Os escravizadores tinham perdido toda a sensibilidade e ficaram completamente cegos para os sofrimentos dos filhos de Israel; não eram mais capazes de enxergar a humanidade do próximo, ainda que esta estivesse a poucos centímetros de seus olhos.
Talvez a praga da escuridão que se abateu sobre o Faraó e seu povo não se refira à ausência de luz, mas à falta total de sensibilidade e consideração diante dos sofrimentos alheios. Haviam perdido a capacidade de se importar e ninguém se moveu de seu lugar; todos aceitaram as ordens do Faraó com cegueira covarde. Por isso diz o Pentateuco: “Nenhum homem viu seu irmão”.
Após 3.500 anos, a Europa nazifascista mostrou não ter aprendido a lição. Os novos egípcios requintaram seus métodos de tortura e assassinato. A escravidão passou para os campos de trabalho forçado. Não apenas meninos recém-nascidos foram mortos, mas todos os que a loucura ariana considerava inúteis ou inferiores.
Diversos pensadores questionam como Deus permitiu que o Holocausto acontecesse. Como se pode ainda acreditar em Deus depois de Auschwitz? Onde estava Deus num dos capítulos mais terríveis da história?
As respostas são contraditórias. Para Richard Rubenstein, a única resposta intelectualmente honesta para o Holocausto é a rejeição de Deus e o reconhecimento de que toda a existência é sem sentido. Para ele, Deus não se importa com o mundo. Já Emil Fackenheim sugere que se olhe atentamente para o Holocausto e se encontre nele uma nova revelação de Deus; rejeitar Deus por causa do Holocausto significaria dar vitória póstuma a Hitler. Segundo o rabino Eliezer Berkovits, o livre-arbítrio humano só é possível quando Deus permanece oculto; intervindo na história, Deus anularia a liberdade humana e sua capacidade de fazer escolhas. Para o rabino Harold Kushner, Deus não é onipotente e, portanto, não haveria contradição entre a existência de um Deus bom e a maldade de certos humanos. Na peça “O Julgamento de Deus”, Elie Wiesel coloca o Criador no banco dos réus, com argumentos contra e a favor de Deus. A obra reflete experiências vividas pessoalmente por Wiesel durante a sua adolescência em Auschwitz.
Diante das tragédias humanas, com frequência, buscamos causas que vão além do âmbito das decisões humanas. Será essa a saída adequada? Questionar-se sobre o lugar de Deus no Holocausto é importante para toda pessoa de fé.
Mas, como refletiu Bento 16 na visita ao campo de Auschwitz, em 2006: “Somos incapazes de perscrutar o segredo de Deus; nós vemos apenas fragmentos e enganamo-nos se pretendemos arvorar-nos em juízes de Deus e da história”. No entanto, devemos fazer-nos este outro questionamento, bem mais incômodo: onde estava o homem?
A Shoá não foi obra de Deus ou de anjos malvados: foi de homens, com suas ideologias e sistemas desumanos, de pessoas incapazes de enxergar o outro: “Não viu nenhum homem a seu irmão e não se levantou nenhum homem de seu lugar”.
Somente quando buscamos e assumimos a responsabilidade do homem nos tornamos senhores da história e desenvolvemos a possibilidade de educar as novas gerações para a moderação, o respeito e a paz.
MICHEL SCHLESINGER, 36, é rabino da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso
CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, 64, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.
Publicado originalmente no periódico Folha de São Paulo.Fonte: http://www.votocatolico.net.br/artigos/onde-estava-o-homem
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