Neste ano, ao falarmos de caridade no sentido de amor fraterno, serviçal
e desinteressado nos vem correndo à mente outra palavra que tem um
significado muito rico nas parábolas evangélicas, especialmente no
evangelista Lucas – a misericórdia.
Esta é definida na Língua
Portuguesa como "a virtude que leva a ter compaixão pelas misérias dos
outros". Definição precisa em que cada palavra tem seu significado e por
isso merece, ainda que de modo sucinto, um aprofundamento.
Virtude
é a disposição ou a força constante da alma que nos leva a praticar o
bem e a evitar o mal. Compaixão, por sua vez, é sofrer com (cum +
passio, passionis, no Latim), ou seja, não basta somente o meu interesse
teórico pelos problemas do outro. Ao contrário, sou chamado – a exemplo
de Cristo que veio do seio do Pai partilhar conosco todas as
vicissitudes desta vida, menos o pecado – a "sentir na pele" o que sente
o meu irmão, a fim de poder, desse modo, entender o seu drama e buscar,
incansavelmente, uma saída eficaz para os males que o acometem.
Dito
isso, não há como não pensar, de imediato, na parábola do Bom
Samaritano (Lc 10,25-37), mergulhar nessa narrativa de Jesus e dela
extrair consequências práticas para a nossa vida diária cercada por
tantas belezas naturais, mas também por não poucas e nem pequenas
mazelas humanas a clamarem por soluções imediatas.
Pois bem,
Lucas nos conta que Jesus está em uma sinagoga nas proximidades de
Jericó e ali um Doutor da Lei (legista) lhe propõe uma questão
espinhosa: "Mestre, que devo fazer para possuir a vida eterna?" Longe de
dar uma resposta pronta, que poderia acarretar discussão estéril e
prolongada, Jesus faz ao legista outra pergunta, levando-o à reflexão a
partir da própria legislação de Moisés, na qual o interrogante era
especialista: "Que está escrito na Lei?"
O legista, então,
responde: "Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a
tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu
próximo como a ti mesmo". Aqui já há um problema a ser desvendado no
desenrolar da narrativa de Lucas, que é o seguinte: para o legista o
próximo não era qualquer pessoa, como era para Jesus, mas apenas o
companheiro, o amigo, o compatriota, o vizinho de tribo, enfim, o
conceito de próximo se restringia a um grupo bem restrito de pessoas.
Vê-se,
assim, que a prática da caridade para o especialista em leis que busca
Jesus estava limitada a quem fosse israelita e não aos estrangeiros, por
exemplo. Para ele não era válido o ensinamento de São Paulo a dizer que
a plenitude da Lei é a caridade (Gl 5,14), por isso insiste o legista
no questionamento a Cristo: "E quem é meu próximo?" Aqui há outro
impasse: se vale a Lei pela Lei, só é próximo quem tem a mesma
nacionalidade, mas se vale a mensagem de Jesus, então todo ser humano
deve ser considerado meu semelhante, e tenho o dever ético de ajudá-lo
em suas penúrias.
Certamente, mais uma vez, para evitar uma
discussão delongada e infrutífera, o Senhor Jesus contorna a pergunta
contando a parábola que ficou conhecida como a do "Bom Samaritano", e
inspira até hoje tantos nomes de instituições de caridade pelo mundo
todo. E qual o teor dessa rica parábola que evoca solicitude para com a
miséria alheia?
Conta Jesus que um homem descia de Jerusalém para
Jericó e, na estrada, foi assaltado, espancado e deixado quase morto.
Passam pelo ferido um sacerdote e depois um levita, homens de Deus, mas
que, talvez para não se atrasarem para o culto, não perdem tempo com o
necessitado.
Eis, porém, que, em seguida, atravessa por ali um
samaritano, homem que o Doutor da Lei odiava, especialmente por razões
político-religiosas. Sim, eles eram filhos de assírios com israelitas e,
portanto, considerados impuros. Ademais, construíram um templo próprio
sobre o monte Garizim, afastando-se, desse modo, do verdadeiro Templo de
Jerusalém, gesto que levava os samaritanos a serem considerados
cismáticos.
Contudo, é o excluído samaritano quem ajuda o caído,
untando suas feridas com vinho e azeite, prestando-lhe, como diríamos
hoje, os primeiros socorros. Depois, leva-o a um albergue, cuida dele
durante a noite e, ao sair para seguir viagem, deixa ao dono da
hospedaria pagamento antecipado para o cuidado do enfermo, garantindo
ainda que se houvesse algum gasto a mais, na volta da viagem, ele – o
samaritano – pagaria.
Concluída a parábola, Jesus se volta para o
Doutor da Lei e pergunta: "Na tua opinião, qual dos três foi próximo
daquele que caiu nas mãos dos ladrões?" Ora, o legista não queria
responder: "o samaritano", nome que ele não ousava pronunciar, mas
também não poderia cair em contradição dizendo que fora o sacerdote ou o
levita. Então se sai com essa: "Aquele que usou de misericórdia para
com ele", ou seja, o samaritano. Ao que o Senhor Jesus exorta: "Vai tu
também e faze o mesmo".
Dessa parábola, poderíamos tirar muitas reflexões proveitosas. Atentemo-nos, porém, para algumas delas:
Ela
remove a ideia de que próximo é só o meu conterrâneo ou o meu amigo. É
meu próximo todo homem ou mulher que necessite da minha ajuda. Não
preciso saber seu nome, sua terra, sua religião, seu status social. Devo
estender-lhe a mão e socorrê-lo. Afinal, a razão de o Evangelho omitir o
nome e a região de proveniência do homem assaltado não é para ensinar
que todos somos, indistintamente, irmãos?
Outro ponto é que o
problema da caridade não está em quem será auxiliado, mas em quem
auxilia. Temos preconceitos e até tentamos nos justificar: se ele não
fosse dependente químico, eu até o ajudaria; se ela não morasse naquela
região da cidade, eu bem que poderia auxiliar; se ele fosse outra pessoa
e não um ex-presidiário, até que eu faria algo por ele... E assim vai
nossa cantilena de justificativas sem compaixão.
Um terceiro
aspecto a destacar é o amor aos inimigos, algo difícil e que exige de
nós uma profunda conversão diária. Difícil, sim, porém não impossível,
especialmente se contamos com a graça de Deus, que a ninguém falta. É
por essa graça que ficou marcado o exemplo do Papa João Paulo II ao
visitar, na cadeia, o homem que tentou matá-lo na Praça de São Pedro, a
fim de oferecer ao atirador profissional o seu perdão.
Ainda uma
questão pode ser aprofundada: como é possível viver essa caridade
misericordiosa e compassiva? – Responde-nos Bento XVI: "Isso só é
possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro
que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento.
Então, aprendo a ver aquela pessoa já não somente com meus olhos e
sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O Seu amigo é
meu amigo. (...) Mas se na minha vida negligencio completamente a
atenção ao outro, importando-me apenas com ser 'piedoso' e cumprir os
meus 'deveres religiosos', então definha também a relação com Deus.
Nesse caso, trata-se de uma relação correta, mas sem amor. Só a minha
disponibilidade para ir ao encontro do próximo e demonstrar-lhe amor é
que me torna sensível também diante de Deus. Só o serviço ao próximo é
que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo
como Ele me ama" (Deus caritas est, n. 18).
CARDEAL ORANI JOÃO TEMPESTA, O. Cist.
ARCEBISPO METROPOLITANO DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO, RJ
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