A
Bíblia é a Palavra de Deus inspirada. Mas como se dá essa inspiração?
Talvez imaginemos um ditado mecânico como a de um chefe à sua
datilógrafa. Esta escreve coisas que não entende e que são entendidas
apenas pelo chefe e sua equipe. Isso não é a inspiração bíblica. Pois,
ela não dispensa certa compreensão do autor humano (o hagiógrafo), nem
sua participação na redação do texto sagrado.
A inspiração bíblica também não é
revelação de verdades que o autor humano não conheça. Existe sim, o
carisma da Revelação, especialmente nos profetas. Mas é diferente da
inspiração bíblica. Esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo
descrevia uma batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas,
sem receber revelação divina.
Inspiração Bíblica é a iluminação da
mente do autor humano para que possa, com os dados de sua cultura
religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus.
O Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor
para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele percebeu.
Tais livros são todos humanos (Deus em
nada dispensa a atividade racional do homem) e divinos (Deus acompanha a
redação do homem escritor). A Bíblia é um livro divino-humano.
Transmite o pensamento de Deus em roupagem humana. Assemelha-se ao
mistério da Encarnação, onde Deus se revestiu de carne humana, pois na
Bíblia a Palavra de Deus se revestiu da palavra do homem (judeu, grego,
com todas as suas particularidades de expressão).
A finalidade da inspiração bíblica é
estritamente religiosa. Não foi escrita para nos ensinar ciências
naturais, mas aquilo que ultrapassa a razão humana (o sentido do mundo,
do homem, da vida, da morte, etc diante de Deus). Portanto, não há
contradição entre a Bíblia e as ciências naturais. Mesmo Gênesis 1-3 não
pretende ensinar como nem quando o mundo foi feito.
A Bíblia só é inspirada quando trata de assuntos religiosos? Há páginas na Bíblia não inspiradas?
Toda a Bíblia, em qualquer de suas
partes, é inspirada, qualquer que seja a sua temática. Ocorre, porém,
que Deus comunica sua mensagem religiosa em linguagem familiar
pré-científica, bem entendida no trato quotidiano. Por exemplo, quando
falamos em “nascer-do-sol” ou “pôr-do-sol”, supomos o sistema
geocêntrico (ultrapassado), mas não somos taxados de mentirosos, porque
não pretendemos definir assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia
diz que o mundo foi feito em 6 dias, ou que a luz foi feita antes do sol
e das estrelas, ela não ensina teorias astronômicas, mas alude ao mundo
em linguagem dos hebreus antigos para dizer que o mundo todo é criatura
de Deus. Portanto, em assuntos não-religiosos, a Bíblia adapta-se ao
modo de falar familiar ou pré-científico dos homens que, devidamente
entendido, não é portador de erro.
Também todas as “palavras” da Escritura
são inspiradas. Os conceitos dos homens estão sempre ligados às
palavras. Quando o Espírito Santo iluminava a mente dos autores
sagrados, iluminava também as palavras. É por isto que os próprios
autores sagrados fazem questão de realçar de realçar vocábulos da
Bíblia: Jo 10,34-35; Hb 8,13; Gl 3,16.
Notemos, porém, que somente as palavras
das línguas originais (hebraico, aramaico e grego) foram assim
iluminadas. As traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração.
Por isso, ao ler a Bíblia, devemos nos certificar de estarmos usando uma
tradução fiel e equivalente aos originais.
“Toda a Escritura é inspirada por Deus, e
útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na
justiça.” (2Tm 3,16).
Para extrair a mensagem religiosa é
absolutamente necessário levar em conta o gênero literário do texto. Por
exemplo, “leis” tem seu gênero literário próprio (claro e conciso para
que ninguém possa se desculpar), a poesia tem gênero literário oposto ao
das leis (metafórico, subjetivo). Uma crônica é diferente de uma carta.
Uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é
diferente de um fato histórico.
Na Bíblia há diversos gêneros:
histórico; história em estilo popular (Sansão); poesia; parábola;
alegoria (Jo 15,1-6); a lei e muitos outros. Cada gênero tem suas regras
de interpretação próprias. Não posso entender uma poesia (cheia de
imagens) como entendo uma lei (clara e sem imagens). Assim, a criação do
mundo em Gn 1 é poesia. Enquanto a narração da Última Ceia é relato
histórico. Este devo entender ao pé da letra, enquanto aquele outro não o
posso.
Antes de ler um livro da Bíblia é
necessário se informar do seu gênero literário, a fim de entender os
critérios de redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser obtida
nas introduções que as edições bíblicas apresentam para cada livro
sagrado.
Pergunta-se ainda: se a Bíblia é toda
inspirada, como se pode explicar as “contradições” e “erros” que ela
contêm? Afinal Deus existe como afirma Jo 1,18 ou não existe como afirma
Sl 52(53), 1? O sol parou, conforme Js 10,12-14 e Is 38,7s? De Abraão a
Jesus houve apenas 42 gerações (Mt 1,17)? Afinal o maná, era insípido e
pouco atraente (Nm 11,4-9) ou saboroso (Sb 16,20s) ?
Responde-se: A Bíblia é isenta de erros
em tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma e no sentido em que o
hagiógrafo entendeu.
Portanto, em outras palavras, para
obtermos a mensagem isenta de erros devemos verificar se é algo afirmado
pelo próprio hagiógrafo, ou se ele afirmou em nome de outrem e qual o
gênero que ele adotou.
Voltando aos casos apontados: Em Jo 1,18
o hagiógrafo, como tal, é quem afirma que Jesus revelou Deus Pai. Mas
no salmo 52(53), 1, o hagiógrafo apenas afirma (com plena veracidade)
que o insensato nega a existência de Deus. O insensato erra ao negar, o
salmista apenas verifica o fato. A “parada do sol” está dentro de um
contexto de poesia lírica, onde “estacionamento do sol” quer dizer
“escurecimento da atmosfera, clima de tempestade de granizo”. Josué
pediu a Deus essa tempestade, a qual é relatada em Js 10,11. Os demais
casos se enquadram no uso do gênero literário do midraxe.
Midraxe é uma narração de fundo
histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à instrução
teológica. O autor conta o fato de modo a destacar o valor ou o
significado religioso deste fato. Sua intenção não é a de um cronista,
mas a de um catequista ou teólogo. O caso do maná: em Nm há uma narração
de cronista, enquanto em Sb é apresentado o sentido teológico do maná
num midraxe. O maná era saboroso não por seu paladar, mas por ser o
penhor da entrada do povo na Terra Prometida. As 42 gerações relatadas
entre Abraão e Jesus visa destacar a simbologia do número 42 (3×14): em
Cristo se cumpre todas as promessas feitas a Israel, é o Consumador da
obra de Davi.
Ao meditarmos a Bíblia, oremos como
Santo Agostinho: “Fazei-me ouvir e descobrir como no começo criaste o
céu e a terra. Assim escreveu Moisés, para depois ir embora, sair deste
mundo. Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu lhe imploraria para
que me explicasse estas palavras. Mas não posso interrogá-lo. Por isso
dirijo-me a Ti, Verdade, Deus meu, de que estava ele possuído quando
disse coisas verdadeiras. E Tu, que concedeste a teu servo enunciar
estas coisas verdadeiras, concede também a mim compreendê-las.”
(Confissões XI 3,5)
“Nenhuma profecia da Escritura é de
interpretação particular. Nenhuma foi proferida pela vontade humana.
Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (2 Pd
1,20-21)
***
D. Estêvão Bettencourt, osb
Fonte: Apostila do Mater Ecclesiae: Curso Bíblico
D. Estêvão Bettencourt, osb
Fonte: Apostila do Mater Ecclesiae: Curso Bíblico
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