Em
síntese: A alma humana é espiritual, ou seja, incorpórea e imaterial.
Por conseguinte, não se origina por geração a partir do casal humano nem
por emanação da Divindade, mas tem seu princípio de existência num ato
criador de Deus, que a cria e infunde no momento da fecundação do óvulo
pelo espermatozoide.
A questão da origem da alma humana tem
suscitado interrogações: alguns autores, querendo afastar a teoria da
reencarnação ou da preexistência da alma humana, afirmam que esta é
gerada pelos genitores. – Quem assim pensa, admite, nem sempre de modo
consciente, uma determinada antropologia: o ser humano seria um todo
monolítico, no qual não se distinguiriam propriamente o corpo material e
a alma espiritual; em tal caso, estaria claro que, ao gerarem uma
criança, os pais estariam gerando a alma dessa criança. O corpo e a alma
seriam apenas facetas dessa criança, não porém, elementos distintos.
Ora, a fim de elucidar tal temática,
começaremos por considerar a natureza do ser humano; após o quê, será
mais fácil perceber a maneira como se origina a alma humana.
O ser humano: corpo e alma
Todo ser humano é um composto de dois
elementos realmente distintos um do outro: o corpo material, e a alma
espiritual. São duas substâncias (como diz a Filosofia), que se
complementam mutuamente; a alma espiritual é o princípio vital do corpo
material, e não pode ser confundida ou identificada com este.
É preciso, porém, aduzir provas que demonstrem a espiritualidade da alma humana. É o que vamos fazer.
A espiritualidade da alma humana
A alma humana é realmente espiritual? –
Para responder, deve-se levar em conta o seguinte princípio: o ser e o
agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si; cada qual
age em função do que é. Em consequência, se vejo que determinada
substância tem por efeito “salgar” alimentos, digo que o seu ser consta
de sódio e cloro (NaCl); se outra substância é corrosiva, suporei que
seja um ácido, como o ácido sulfúrico (H2SO4). Se, pois, desejo saber se
a alma humana é espiritual ou material, devo examinar as suas
atividades; se estas não ultrapassam as capacidades da matéria, direi
que a alma humana é material; se as ultrapassam, direi que é espiritual
ou imaterial.
Analisemos portanto as atividades da alma humana.
Percepção do universal
É certo que o ser humano é capaz de
conceber noções abstratas, universais, percebendo o essencial; é apto a
reconhecer proporções, relações de dependência, de causalidade, de
finalidade. Com efeito; depois de ver um homem, uma mulher, uma criança,
um ancião, um gordo, um magro…, a inteligência humana se emancipa das
diferenças motivadas por cor, tamanh0, sexo, idade… e define todos esses
indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são todos
iguais entre si pela natureza (que a inteligência apreende), embora
diferentes uns dos outros pelos aspectos que os olhos percebem. Em
consequência, deve-se dizer: a alma humana, que, por sua atividade, é
capaz de ultrapassar o concreto, o material, é imaterial ou espiritual.
A psicologia experimental corrobora esta conclusão mediante a seguinte experiência:
Disponha-se uma série de vasilhas
fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um macaco. O
animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o
operador então abre a primeira vasilha e lhe mostra o alimento.
Repita-se a experiência, encerrando na Segunda vasilha o alimento. O
animal, recolocado diante da série, é guiado pela memória sensitiva e,
recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai à primeira vasilha. O
operador o coloca então diante do segundo recipiente, do qual o animal
se serve. Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro
recipiente: guiado pelas impressões sensíveis do ensaio anterior, o
macaco se dirige para o segundo vaso. Caso se multipliquem as
experiências, verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente
em que, no ensaio anterior, encontrou o que lhe interessava. Nunca
chega a abstrair dessas diversas experiências a lei da progressão que as
rege. Nunca se desvencilha das notas concretas da vasilha em que por
último encontrou a sua ração, deduzindo que não é o fato de ser a
segunda, a terceira ou a Quarta vasilha que interessa, mas é o fato de
ser a vasilha n + 1 (fórmula em que n designa o número da experiência
anterior). Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou
cinco experiências, consegue abstrair a lei n + 1 do fenômeno. Isto se
dá porque a criança tem um princípio vital (alma) que não é material.
A linguagem humana
A linguagem é a capacidade que temos, de
formular conceitos universais e exprimi-los mediante sons concretos,
que variam de idioma para idioma. Assim os conceitos de pai e mãe, por
exemplo, são conceitos universais, que cada povo exprime de modo
diferente. O homem é capaz de emancipar-se de determinado som associado a
determinado conceito universal para propor exatamente o mesmo conceito
mediante outro vocábulo; é o que se dá com os tradutores.
Quem olha para a cavidade bucal de um
homem e a de um macaco, é propenso a dizer: se o homem fala, o macaco
também fala; não obstante, isto não se dá. A diferença de
comportamentos só se pode explicar pelo fato de que no homem há algo
mais do que no macaco; esse algo mais é a espiritualidade do seu
princípio vital; em virtude deste, o homem é capaz de perceber que
diversos sons não significam sempre diversos conceitos ou é capaz de
distinguir entre o som concreto e o conceito universal, imaterial.
A consciência de si mesmo
O ser humano, além de conhecer os
objetos que o cercam, possui o conhecimento de si mesmo ou a
autoconsciência; o homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor…
Possuindo o conhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o
plano de ordenar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao
seu ideal, superando paixões desregradas, cultivando boas tendências,
etc. Isto tudo escapa às possibilidades de um animal irracional, pois
este conhece o seu objeto concreto e é incapaz de se emancipar das notas
concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira sistemática a
fim de se conhecer. O ser humano, ao contrário, realiza esta
introspecção, porque o seu princípio de conhecimento (intelectivo) é
capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, material, para atingir o
próprio sujeito.
A cultura e o progresso
Verifica-se que o homem intervém no seu
ambiente natural, criando cultura e civilização. Essa atividade se deve
à ação intelectiva e planejadora da pessoa humana. Com efeito; ao
conhecer a natureza que o cerca, o homem percebe as relações entre meios
e fins ou as proporções entre os diversos termos, e concebe projetos
para melhorar o seu ambiente (habitat, alimentação, vestuário, arte…);
vai assim construindo civilizações sucessivas… Ora o animal é incapaz de
progredir em suas expressões, porque é guiado por instintos: embora
certeiro em seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a si
mesmo do que faz ou dos porquês da sua atividade; é por isto incapaz de
se corrigir ou de se ultrapassar. Em última análise, a raiz da
diferença entre o comportamento do homem e o do animal irracional reside
no fato de que o homem tem um princípio vital imaterial ou espiritual,
ao passo que o animal tem uma alma material ou confinada pelas
potencialidades da matéria.
Eis, porém, que uma objeção se levanta: como admitir a
espiritualidade da alma humana quando se sabe que as atividades mais
sublimes do homem não se realizam se o organismo está lesado em seu
cérebro ou em seu sistema nervoso?
A resposta não é difícil. Embora a alma
seja espiritual, ela depende do organismo, especialmente do cérebro e do
sistema nervoso, para funcionar devidamente. Por conseguinte, se o
cérebro está lesado, a inteligência carece do instrumental sem o qual
não pode manifestar a sua perspicácia; o sujeito poderá chegar a levar
vida meramente vegetativa. É o que leva muitos estudiosos a dizer que a
inteligência é o próprio cérebro ou a massa cinzenta. Tal conclusão,
porém, é errônea pelos motivos indicados. A alma humana é espiritual,
mas foi feita para animar a matéria e aperfeiçoar-se em união com esta.
A imortalidade da alma humana
A imortalidade decorre da espiritualidade da alma. Vejamos por quê.
A natureza mesma da alma humana
A morte é a dissolução do ser vivo. Ora
a alma não pode dissolver-se por si, porque não é composta de partes,
mas é simples, como todo espírito é simples ou isento de composição. Por
isto a alma humana, uma vez criada, subsiste para sempre, mesmo fora do
corpo (do qual ela não depende para existir). Só poderia deixar de
existir se Deus, que a criou, a quisesse aniquilar; todavia julga-se que
Deus não aniquila nenhuma de suas criaturas (embora o possa), pois isto
seria uma espécie de contradição; além disto, seria algo de injusto,
porque tornaria impossível a aplicação das sanções merecidas pelo ser
humano nesta vida.
Concluímos, pois, que a alma humana é
naturalmente imortal e não deixa de usufruir desta sua prerrogativa,
pois Deus não subtrai às criaturas o que lhes outorgou como atributos
próprios.
O desejo natural
Todo homem deseja existir sem limites de
duração. Esse desejo se deriva da própria natureza do homem; não
depende de alguma forma de cultura. Ora tal desejo não pode ser
frustrado ou vão; se o fosse, a natureza seria contraditória e absurda.
Mais: ela suporia o Absurdo na sua origem, pois teria sido feita para a
vida, e a vida sem fim, mas não teria a capacidade de usufruir da
imortalidade. Por conseguinte, a alma humana há de ser imortal, a fim de
poder fruir da plenitude de vida à qual ela naturalmente aspira.
Dir-se-á, porém: se tal argumento é
válido para a alma, há de ser válido também para o homem todo (composto
de corpo e alma), pois o ser humano como tal deseja viver sempre.
Em resposta, observemos: o desejo de
imortalidade do homem (ou do composto de corpo e alma), embora seja
natural, não é senão uma aspiração ineficaz, pois o composto humano
tende naturalmente a desgastar-se; os órgãos corpóreos vão-se tornando
ineptos para a vida, até estarem totalmente deteriorados. Nesse momento
a alma se separa do corpo. Ao contrário, o desejo de imortalidade da
alma humana pode ser eficaz, pois a alma humana, não sendo composta,
não se dissolve.
Sabemos, porém, pela fé que o Senhor
Deus quis conceder ao homem a ressurreição física, atendendo assim ao
desejo natural de imortalidade do composto humano.
A sanção da justiça
Todos nós aspiramos ardentemente à
justiça. Contudo a justiça na vida presente é precária. Frequentemente
as pessoas retas são prejudicadas por praticarem o bem, ao passo que os
iníquos são materialmente beneficiados pela perversão.
Ora, se a alma humana não fosse apta a
sobreviver após a existência presente a fim de receber a sanção de seus
atos, a justiça ficaria definitivamente conculcada no caso de muitos
homens. A história da humanidade terminaria com o triunfo (ao menos
parcial) da injustiça e da desordem sobre a justiça e o bem. Ora tais
consequências suporiam um mundo absurdo e, na origem desse mundo, um
princípio de contradição e absurdo, consequências estas que não condizem
com a ordem e a harmonia que se verificam em geral no universo. Daí
afirmamos que a alma humana é por si imortal e, por conseguinte, apta a
receber na vida póstuma a justa sanção, que muitas vezes na vida
presente lhe é negada.
O que acaba de ser dito, pode ser
ilustrado pela verificação de certos fenômenos ocorrentes na natureza.
Esta parece excluir a frustração e o absurdo. Com efeito, se tenho
olhos, é porque existem sons e melodias; se tenho pulmões, existe o ar
que lhes corresponde; se tenho fome e sede, existem alimentos de que
preciso; se a agulha magnética se agita dentro da bússola, existe um
polo Norte (invisível, sim, mas muito real) que a atrai. Analogamente,
se verifico em mim a sede espontânea e natural de certos valores ou
mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o Bem
Infinito existem no Além, em correspondência a tais aspirações.
Assim se confirma a tese de que a alma humana é por si imortal.
A origem da alma humana
Proporemos a solução lógica e correta, à
qual se seguirá, à guisa de Apêndice ilustrativo, uma breve resenha de
teorias não aceitáveis.
O Criacionismo
A questão da origem da alma humana se
resolve sem dificuldade, desde que se leve em conta a sua natureza
espiritual. Com efeito; se o modo de agir revela o modo de ser (ou a
índole própria) de determinada criatura, o modo de ser, por sua vez,
revela o modo de começar ou de originar-se dessa criatura. Há uma
correspondência entre agir, ser e vir-a-ser:
A primeira manifestação de uma criatura
é o seu modo de agir. Observando-o, percebemos o seu modo de ser; e,
observando o modo de ser, deduzimos o modo de vir-a-ser dessa criatura.
Consequentemente, se o agir e o ser da
alma humana ultrapassam o concreto material ou transcendem a matéria, a
origem da mesma há de ser também imaterial. Com outras palavras: a alma
humana não vem da matéria nem por evolução nem por geração, mas
diretamente por um ato criador de Deus. – O Senhor cria e infunde cada
alma humana no momento em que se dá a fecundação do óvulo pelo
espermatozóide; o embrião recém-fecundado já possui virtualmente a
organização típica do corpo humano; basta que cresça para que revele as
características do organismo humano; daí dizer-se que já é animado pelo
princípio vital (alma) próprio do corpo humano. Está hoje em dia
superada a tese da animação gradativa, segundo a qual o embrião teria
primeiramente uma alma meramente vegetativa; depois, uma alma sensitiva,
e por último a alma intelectiva, tipicamente humana e espiritual. Não
há razão para admitir tal hipótese, visto que o embrião humano já é
plenamente humano desde que existe o ovo fecundado; uma só alma –
intelectiva e espiritual – preenche as funções vegetativas, sensitivas e
intelectivas.
- A propósito veja-se o artigo do Prof.
Jérôme Lejeune, publicado em PR 305/1987, pp. 457-461, no qual o autor,
após longa pesquisa, afirma a existência de autêntico ser humano desde a
fecundação do óvulo pelo espermatozoide.
Teorias não aceitáveis
a) O emanatismo ensina que a alma humana
é centelha da Divindade apoucada ou amesquinhada na matéria; entraria
no embrião por emanação a partir da Divindade. Tal é a posição de
correntes panteístas antigas, medievais e modernas. – Não se sustenta,
pois supõe que a Divindade se possa repartir, distribuindo-se pelos
corpos dos seres humanos. A Divindade não tem partes, pois isto
significaria ser extensa e corpórea – predicados que não competem a
Deus.
b) O traducianismo¹ ou generacionismo
corporal admite que a alma de cada genitor possa emitir uma semente
vital; a respectiva fecundação daria origem à alma da prole. – Tal
teoria é falha por atribuir à alma espiritual sementes vitais corpóreas,
das quais se originaria outra alma espiritual. Espírito e corpo são
realidades radicalmente diferentes, de modo que não há transição de uma
para outra. O espírito é precisamente o ser incorpóreo, inextenso e
imaterial, dotado de inteligência e vontade.
c) O traducianismo ou generacionismo
espiritual afirma que, por ocasião da fecundação, a alma da prole se
deriva das almas dos genitores como a chama se deriva da chama, sem
semente corpórea. Santo Agostinho (+ 430) era propenso a admitir tal
teoria. - Também esta é falha, pois supõe que a alma humana se possa
repartir – o que contradiz à natureza espiritual da alma humana; o
espírito não tem extensão nem partes.
S. Agostinho era favorável a tal tese,
pois lhe parecia explicar bem a transmissão do pecado original. – Ora a
propósito deve-se dizer que o pecado original na criança não consiste
em alguma mancha herdada dos pais, mas, sim, na ausência da graça
santificante e dos demais dons que os primeiros pais receberam e deviam
ter guardado para os transmitir aos seus descendentes. Essa ausência é
compatível com a realidade de uma alma espiritual diretamente criada por
Deus, com tudo o que naturalmente a integra; a graça santificante e os
dons paradisíacos foram gratuitamente dados por Deus aos primeiros
pais; não pertencem à essência da alma humana.
Resta, pois, a doutrina criacionista como genuína maneira de explicar a origem da alma humana.
***¹ A palavra latina tradux, traducis designa aquilo que transmite ou a semente , o gérmen.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 343 – Ano 1990 – Pág. 545
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 343 – Ano 1990 – Pág. 545
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