quarta-feira, 21 de maio de 2014

Liturgia e Música Sacra – Parte 1

Holy Water, Wine and Wafers of the EucharistConferência proferida na abertura do VIII Congresso de Música Sacra, em Roma, 17 Novembro de 1985.
Entre a liturgia e a música existiu desde o início uma relação fraterna. Quando o homem louva Deus, a palavra sozinha é insuficiente. A palavra dirigida a Deus transcende os limites da linguagem humana. Por esse motivo tal palavra, em todos os tempos, precisamente devido à sua natureza, invocou o auxílio da música, do canto e da voz da criação no som dos instrumentos. De fato, nem só o homem participa no louvor de Deus. A liturgia, como serviço divino, é o inserir-se nisto de que falam todas as coisas.
Porquanto a liturgia e a música, devido à sua natureza, estejam intimamente ligadas entre si, o seu relacionamento foi sempre difícil, sobretudo nos momentos nodais de transição na história e na cultura.
Não é, pois, admiração nenhuma que também hoje seja de novo posto em discussão o problema da forma adequada de música na celebração litúrgica. Nos debates do Concílio, e logo a seguir, parecia que se tratava simplesmente de divergência entre pessoas dedicadas à prática pastoral, por um lado, e músicos da igreja, por outro. Estes não queriam deixar-se coarctar por uma formalidade puramente pastoral, enquanto se esforçavam por afirmar a dignidade intrínseca da música como medida de valor pastoral e litúrgico próprio. Tinha-se, pois, a impressão que o conflito respeitava sobretudo o âmbito do uso da música. Entretanto, porém, a rotura aprofundou-se. A segunda vaga da reforma litúrgica radicalizou o problema até aos seus fundamentos. Trata-se agora da natureza da ação litúrgica como tal, das suas bases antropológicas e teológicas. O conflito que atinge a música sacra é sintomático e descobre um problema mais profundo, a saber: o que é a liturgia.
1. SUPERAR O CONCÍLIO?
Uma nova concepção da liturgia.
A nova fase em que se afirma a vontade de uma reforma litúrgica considera explicitamente como seu fundamento não já as palavras do Concílio Vaticano II, mas sim o seu «espírito». Utilizo como texto paradigmático o artigo bem informado e coerente do Nuovo Dizionario di Liturgia sobre «Canto e música na Igreja». Aqui não se põe em causa de modo nenhum o alto valor artístico do canto gregoriano ou da polifonia clássica. E nem sequer se trata de contrapor a atividade da assembleia a uma arte de elite. O nó da discussão não é tão pouco a recusa de um fixismo histórico que se limitasse a copiar o passado e que por isso mesmo ficasse sem presente e sem futuro. Trata-se antes de uma nova concepção de fundo da liturgia, com que se pretende superar o Concílio, cuja Constituição litúrgica teria incluído «duas almas» (p. 211 a, cf. 212 a).
Liturgia de grupo ou liturgia da Igreja?
Procuremos brevemente conhecer esta concepção nas suas linhas mestras. O ponto de partida da liturgia — assim se diz — é o reunir-se de duas ou três pessoas que estão juntas em nome de Cristo (199 a).
Esta referência à palavra do Senhor (Mt. 18, 20) parece à primeira vista inócua e tradicional. Mas tal palavra adquire um alcance revolucionário pelo facto da citação bíblica ser tirada do seu contexto e ser posta em realce por contraste com o fundo de toda a tradição litúrgica. Porque os «dois ou três» são agora postos em oposição a uma instituição com papéis institucionalizados e em confronto com qualquer «programa codificado». Assim tal definição significa o seguinte: Não é a Igreja que precede o grupo, mas sim o grupo que precede a Igreja. Não é a Igreja no seu conjunto a fazer de suporte à liturgia dos diversos grupos e comunidades, mas sim o próprio grupo é o lugar onde de cada vez nasce a liturgia. A liturgia, por isso, não se desenvolve nem sequer a partir de um modelo comum, de um «rito» (reduzido, enquanto «programa codificado», à imagem negativa da falta de liberdade); a liturgia nasce no momento e no lugar concreto, graças à criatividade de quantos se reúnem. Em tal linguagem sociológica o sacramento do sacerdócio é considerado uma função institucionalizada que, obteve um monopólio (206) e que, graças à instituição (isto é, à Igreja) dissolveu a unidade primitiva e a comunitariedade dos grupos.
Neste contexto a música, assim se diz, tal como o latim, transformaram-se numa linguagem de iniciados, na «língua de uma outra Igreja, quer dizer, da instituição e do seu clero».
O ter isolado a passagem de Mt 18, 20 de toda a tradição bíblica e eclesial da oração comum da Igreja mostra agora, como se vê, consequências graves: a partir da promessa que o Senhor fez a todos os que rezam em qualquer lugar, fez-se uma dogmatização dos grupos autónomos.
A igualdade na oração foi de tal forma exasperada que se transformou num nivelamento que considera o desenvolvimento do ministério sacerdotal o surgir de uma outra Igreja. Deste ponto de vista toda a proposta que venha da Igreja universal é julgada como uma cadeia contra a qual há que insurgir por amor à novidade e liberdade da celebração litúrgica. Não é a obediência perante um todo, mas sim a criatividade do momento que se torna a forma determinante.
Uma «nova música» para uma «nova Igreja»?
É evidente que juntamente com a adopção de uma linguagem sociológica se fez também a assunção de valores: a hierarquia dos valores que deu forma à linguagem sociológica constrói uma nova visão da história e do presente. Assim alguns conceitos usuais (ainda por cima também conciliares!) — como «o grande patrimônio da música sacra», «o órgão rei dos instrumentos», «a universalidade do canto gregoriano» — são timbrados como «mistificações» usadas a fim de «conservar uma determinada forma de poder e de visão ideológica» (p. 200 a). Um certo modo de administrar o poder (assim se diz) sente-se ameaçado pelos processos de transformação cultural e «reage até mascarar como amor à tradição o desejo de autoconservação» (p. 205 n). O canto gregoriano e Palestrina seriam os «numes tutelares» de um antigo repertório mitificado (210 b), elementos de uma «contracultura católica» que neles se apoia como «arquétipos remitificados e super-sacralizados» (208 a), como aliás à liturgia histórica está mais a peito a representação de uma burocracia do culto do que a ação coral de um povo (206 a). O conteúdo do “Motu próprio” de Pio X sobre a música sacra é, finalmente, considerado «uma ideologia culturalmente míope e teologicamente presunçosa de uma ‘música sacra’» (211 a). Aqui, evidentemente, já não é só o sociologismo que se faz sentir, mas estamos perante uma total separação entre o Novo Testamento e a história da Igreja, que se une a uma teoria da decadência característica de muitas situações iluministas: as realidades no seu estado puro encontram-se somente nos inícios primordiais de Jesus; todo o resto da história aparece como uma «velha aventura musical, com experiências desorientadas e enlouquecidas», que agora deve «ser encerrada» para retomar finalmente a via correta (212 a).
Espontaneidade musical do grupo ou música da Igreja?
Mas como se configura esta realidade nova e melhor? Os princípios base já foram precedentemente acenados; agora devemos prestar atenção à sua concretização particular. São formulados de modo claro dois valores de fundo. O «valor primário» de uma liturgia renovada, como se diz, seria «o agir das pessoas (todas) em plenitude e autenticidade» (211 b). Consequentemente a música de igreja significaria em primeiro lugar que o «povo de Deus» representa a sua identidade cantando.
Com isto é também já posto em causa o segundo critério de valor que aqui é ativo: a música é a força que opera a coesão do grupo (217).
Os cantos familiares a uma comunidade tornam-se, por assim dizer, o seu distintivo. Destas premissas brotam as categorias principais da estruturação musical da liturgia: o projeto, o programa, a animação, a direção. Mais importante do que «o quê» (assim se diz) seria «o como» (217). Ser capaz de celebrar seria sobretudo ser capaz de «fazer». A
música deveria sobretudo «ser feita»… Para não ser injusto, devo acrescentar que no artigo em questão se mostra todavia compreensão para as diversas situações culturais e que fica também espaço aberto para assumir o património histórico. É sobretudo sublinhado o caráter pascal da liturgia cristã cujo canto não só representa a identidade do povo de Deus, mas deveria também afirmar a esperança e anunciar a todos o rosto do Pai de Jesus Cristo.
Permanecem assim elementos de continuidade na grande ruptura: estes permitem o diálogo e infundem a esperança de que se possa reencontrar a unidade na compreensão basilar da liturgia que, todavia, ameaça desaparecer, quando se faz derivar a liturgia do grupo e não da Igreja — não só no plano teórico, mas também na prática litúrgica concreta.
Não me alongaria tanto sobre este texto publicado num dicionário prestigioso se pensasse que tais ideias são atribuíveis unicamente a alguns teóricos individuais. Ainda que não haja dúvida nenhuma de que eles não se podem apoiar em nenhum texto do Vaticano II, em alguns serviços e órgãos litúrgicos consolidou-se a ideia de que o espírito do Concílio orientaria em tal direção. Uma opinião demasiado difundida sugere hoje as concepções acabadas de expor, a saber, que as categorias próprias da compreensão conciliar da liturgia sejam precisamente a assim chamada criatividade, o agir de todos os presentes e a referência a um grupo de pessoas que se conhecem e interpelam reciprocamente. Não só jovens padres, mas por vezes também bispos têm a sensação de não serem fiéis ao Concílio se rezam tudo tal como vem no Missal. Deve haver ao menos uma fórmula «criativa», por mais banal que seja. E a saudação «civil» dos presentes, possivelmente também as cordiais saudações à despedida, tornaram-se já partes obrigatórias da ação sagrada a que quase ninguém ousa subtrair-se.
2. O FUNDAMENTO FILOSÓFICO DO CONCEITO E O SEU QUESTIONAMENTO
Uma liturgia (e uma música) anti-institucional?
Com tudo isto ainda não se tocou o núcleo do problema, isto é, da mudança de valor. Tudo quanto disse deriva do ter anteposto o grupo à Igreja. Mas porque razão isso veio a acontecer? O motivo está no fato de se ter assumido a Igreja no conceito genérico de «instituição» e de o termo «instituição», no tipo de sociologia aqui adotado, comportar uma qualidade negativa. Ela incarna o poder e o poder é o contrário da liberdade. Dado que a fé (o seguimento de Jesus) é concebida como  valor positivo, deve estar da parte da liberdade e por sua natureza deve ser, portanto, também anti-institucional. Por conseguinte também a liturgia não pode ser um suporte ou uma parte da instituição; deve, pelo contrário, constituir uma força que ajude a derrubar os poderosos do seu trono. A esperança pascal, de que a liturgia deve dar testemunho, desenvolvendo-se desde este ponto de partida, pode tornar-se muito terrena. Ela torna-se esperança na superação das instituições e torna-se mesmo forma de luta contra o poder. Quem conheça a “Missa Nicaraguensis”, mesmo só por lhe ter lido o textos, pode fazer uma ideia deste desvio da esperança e do realismo que a liturgia adquire aqui enquanto instrumento de uma promessa militante. Pode ver-se também qual o significado e a importância que se atribui à música na nova concepção. A força de choque dos cantos revolucionários comunica um entusiasmo e uma convicção que não poderiam derivar de uma liturgia simplesmente recitada. Aqui já não há nenhuma oposição à música litúrgica. Ela alcançou um novo papel insubstituível no despertar das energias irracionais e do dinamismo comunitário a que tudo tende.
Mas igualmente a música é formação das consciências, porque a palavra cantada se comunica de modo progressivo e muito mais eficaz ao espírito do que a palavra lida ou só pensada. De resto, no caminho que leva às liturgias de grupo, intencionalmente se supera o limite da comunidade local: graças à forma litúrgica e à sua música constitui-se
uma nova solidariedade, por meio da qual deve formar-se um novo povo, que se auto define povo de Deus, enquanto que, de facto, por Deus se entende a si próprio e às energias históricas que em si se desenvolveram.
Liturgia e música de «libertação»?
Voltemos agora à análise dos valores que se tornaram determinantes na nova consciência litúrgica. Trata-se, por um lado, da qualidade negativa do conceito de instituição e da consideração da Igreja exclusivamente sob este aspecto sociológico, ainda por cima não na ótica de uma sociologia empírica, mas de um ponto de vista que deriva dos chamados mestres da suspeição. Vê-se que realizaram a sua obra de modo muito eficaz. Conseguiram, de fato, uma determinação das consciências que é ativa mesmo onde nada se sabe desta origem. A suspeição, aliás, não teria podido ter uma tal força incendiária, se não fosse acompanhada por uma promessa, cujo fascínio é quase inevitável: a ideia da liberdade como direito autêntico da dignidade do homem. Sob este aspecto, o núcleo da discussão deve ser a pergunta: Qual é o verdadeiro conceito da liberdade? Com isto o debate sobre a liturgia é reconduzido ao seu ponto essencial, uma vez que na liturgia, na verdade, se trata da presença da salvação, do apontar para a verdadeira liberdade. Ter posto em evidência o núcleo da questão é, sem dúvida, o elemento positivo da nova disputa.
Liturgia sem a Igreja é em si uma contradição
Contemporaneamente manifestou-se aquilo que hoje constitui o verdadeiro mal-estar dos cristãos católicos. Se a Igreja aparece agora somente como instituição, como detentora do poder e, por isso, como contraparte da liberdade, como impedimento da salvação, então a fé contradiz-se a si mesma; porque por um lado não pode prescindir da
Igreja, mas pelo outro está alinhada fundamentalmente contra ela. Isto constitui também o paradoxo verdadeiramente trágico desta orientação da reforma litúrgica, porque a liturgia sem a Igreja é em si uma contradição.
Onde todos agem para que todos se tornem sujeito, desaparece — com a Igreja sujeito comum — também o verdadeiro «ator» da liturgia. Esquece-se, de fato, que ela deveria ser «Opus Dei», em que Ele próprio atua em primeiro lugar e em que nós, precisamente por meio da sua ação, somos redimidos. Se o grupo se celebra a si mesmo, celebra na realidade um nada, porque o grupo não é o motivo para celebrar. E é por isso que o agir de todos produz aborrecimento: na realidade, nada acontece, se permanece ausente Aquele que todos esperam. A passagem a intuitos mais concretos, como se refletem na “Missa Nicaraguensis”, é assim simplesmente lógica.
Quem sustenta este modo de pensar deve por isso ser interrogado com toda a franqueza: a Igreja é mesmo só instituição, burocracia do culto, aparato de poder? O ministério sacerdotal é apenas monopolização de privilégios sacrais? Se não se conseguem superar estas concepções, mesmo no plano afetivo, e ver de novo com o coração a Igreja de outro modo, então a liturgia não será renovada, mas sim mortos sepultam outros mortos e a isto chamam reforma. Neste caso, naturalmente, já não há sequer a música da Igreja.
Antes, de direito, nem sequer se pode falar de liturgia, dado que esta pressupõe a Igreja: o que resta são rituais de grupo, que se servem mais ou menos habilmente de meios expressivos musicais. Se a liturgia deve sobreviver ou até ser renovada, é de necessidade elementar que a Igreja seja novamente redescoberta. E acrescento: se a alienação do homem deve ser superada, se ele deve reencontrar a sua identidade, é indispensável que reencontre a Igreja. Esta, de facto, não é uma instituição misantrópica, mas sim aquele novo Nós em que finalmente o Eu pode adquirir a sua base e a sua morada.
Na liturgia não importa fazer algo, mas ser Seria benéfico reler neste contexto com muita atenção o pequeno livro com que Romano Guardini, o grande pioneiro da renovação litúrgica, concluiu a sua obra literária no último ano conciliar. Ele próprio sublinha ter escrito este livro preocupado pelo amor à Igreja, da qual conhecia muitíssimo bem a condição humana e os seus riscos. Mas ele tinha aprendido a descobrir naquela humanidade o escândalo da encarnação de Deus: tinha aprendido a ver nela a presença do Senhor que fez da Igreja o seu Corpo. Somente se assim é, existe uma contemporaneidade de Jesus Cristo conosco. E somente se esta se verifica, existe uma liturgia real que não é somente um recordar o mistério pascal, mas sim a sua presença verdadeira. E ainda, somente se assim é a liturgia é participação no diálogo trinitário entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Somente deste modo a liturgia não é o nosso «fazer», mas sim «opus Dei» — o agir de Deus sobre nós e em nós. Por isso Guardini sublinhou expressamente que na liturgia não importa fazer algo, mas ser. Pensar que o agir de todos seja o valor central da liturgia, é o contrário mais radical que se possa imaginar perante a concepção que Guardini tem da liturgia. Na verdade, o agir de todos não só não é o valor fundamental da liturgia, mas como tal, não é de fato um valor.

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