Em síntese: O presente artigo examina os fundamentos bíblicos e tradicionais da crença na existência e na atividade do demônio, visto que nos últimos tempos se vem negando com ênfase tal artigo de fé. A negação procede de preconceitos ou também do desejo de dissipar caricaturas do anjo mau existentes na crendice popular. O assunto não é da área filosófica, mas é estritamente teológico; portanto a explanação do mesmo depende da Revelação oral e escrita, que a Igreja, como Mãe e Mestra assistida por Jesus, tem transmitido aos fiéis.
Nos últimos decênios, especialmente nos anos mais recentes, autores cristãos têm negado a existência do demônio através da imprensa escrita e de outros meios de comunicação.Alguns o fazem superficialmente, quase num estilo de impacto e sensacionalismo, como fez, por exemplo, o Pe. José Fernandes de Oliveira SCJ no Jornal do Santuário de Aparecida, edição de 15 a 21/08/92: nega gratuitamente, sem argumentar (…), e com certo sarcasmo, deixando confusos os leitores despreparados.
Outros pretendem provar que o demônio não existe, mas foi introduzido na Bíblia e na Tradição cristã por influência do paganismo. Tal é o caso do Pe. Oscar Quevedo em seu livro “Antes que os demônios voltem”, livro já comentado em PR 323/1989, pp. 146-156, onde são apontados preconceitos e sofismas do autor da obra.
Mais recentemente ainda, Geraldo E. Dallegrave, benemérito aliás por obras de apologética católica, escreveu a respeito na “Gazeta do Povo” de Curitiba, edição de 23/8/92, um artigo superficial e incorreto, que deixou perplexa uma parte do público. É possível que as deformações do conceito de demônio tenham levado Dallegrave a uma posição extrema, posição, porém, muito mal fundamentada e destoante do pensamento cristão.
Na verdade, nenhum teólogo tem interesse em se deter longamente sobre a existência e a ação do demônio. Este é “um cão acorrentado, que pode ladrar violentamente, mas só consegue morder a quem se lhe chega perto” (S. Agostinho). Todavia, por respeito ao patrimônio da fé, o teólogo é obrigado a tratar do assunto quando se levantam questões a respeito. Os critérios para abordar tal tema não são os da Filosofia, mas os da Revelação Divina, ou seja, a Palavra de Deus oral e escrita (S. Escritura) tal como nos chega através da Igreja, Mãe e Mestra.
Comecemos, pois, por examinar o testemunho bíblico, levando em conta especial o artigo de Geraldo E. Dallegrave.
O Testemunho Bíblico1. Geraldo E. Dallegrave dá ao seu artigo um título infeliz: “O termo “demônio” não aparece uma só vez no original do Velho Testamento”.
- Ora o texto original do Antigo Testamento foi quase todo escrito em hebraico, língua sagrada dos judeus; em grego temos apenas os livros deuterocanônicos¹: Tobias, Judite, Baruque, Eclesiástico, ½ Macabeus, Sabedoria, além de fragmentos (Daniel 3,24-90; 13,1-14,42; Ester 10,4-16,24). Em conseqüência, compreende-se que o texto original (hebraico) do Antigo Testamento não pode apresentar o vocábulo daimon ou daimonion (= demônio), que é grego. Será que Dallegrave não percebeu a incoerência do seu título?
Se não existe a palavra grega daimon nos escritos hebraicos do Antigo Testamento, existem palavras hebraicas equivalentes, como são:
a) Satã = Adversário. Este é um anjo que aparece no livro de Jó como detrator do homem e causador das suas desgraças; cf. Jó 1,7; 2,2; ver também 1Rs 22,19-23. Mas nitidamente ainda ocorre em 1Cr 21,1, onde Satã é tido como aquele que instiga o homem ao pecado;
b) Belial, beliyya’al (= sem utilidade?) é o anjo malvado, mencionado em 2Sm 23,6: “Os homens de Belial são todos como a espinha rejeitada …”; Jó 34,18: “Deus, que diz a um rei: “Belial (…)”.
São Paulo designa como Belial o chefe dos espíritos maus, que se opõe a Cristo e se manifesta na vida dos pagãos:
“Que acordo há entre Cristo e Belial? Que relação entre o fiel e o incrédulo?” (2Cor 6,15).
c) Asmodeu (= Exterminador) é o anjo mau, que deu morte sucessivamente aos sete pretendentes de Sara, filha de Raguel; cf. Tb 3,8; 6,14.
d) Baalzebub (= Senhor das mosca) era o nome de uma divindade filistéia (ou de Acaron); cf. 2Rs 1,2016. Os judeus, após o exílio (586-538 a.C.), evitavam pronunciar o nome de Satá (Berakot (60,1); por isto, em seu lugar, usavam o nome Baalzebub, deformação de Baalzebul (= dono da casa, isto é, Príncipe da Moral Infernal). Finalmente os rabinos, querendo escarnecer os ídolos, modificaram o nome para Baalzebel (= Senhor do Esterco). Ver no Novo Testamento Mc 3,20.
e) Serpente Tentadora, que induziu os primeiros pais ao pecado: Gênesis 3,1-6. O texto grego do livro da Sabedoria apresenta essa Serpente como sendo ho diábolos (= o diabo); ver Sb 2,24.
2. Quanto ao exorcismo ou ao rito aplicado para expulsar o demônio, encontramo-lo entre os judeus do tempo de Cristo. Assim o historiador judeu Flávio José (37-95 d.C.), no seu livro de Antigüidades Judaicas 8,45s, apresenta a descrição do exorcismo efetuado na época; além disto, refere que foram atribuídas ao rei Salomão “sentenças adequadas para obter a cura de doenças, e fórmulas de exorcismo mediante as quais se podiam subjugar e rechaçar os espíritos, de modo que não conseguissem retornar”.
O Novo Testamento dá testemunho de que os judeus praticavam o exorcismo – o que supõe a crença na existência do demônio. Tenham-se em vista:
At 19,13: “Alguns dos exorcistas judeus ambulantes começaram a pronunciar, eles também, o nome do Senhor Jesus sobre aqueles que tinham espíritos maus. E diziam: “Eu vos conjuro por Jesus, a quem Paulo proclama!”.
O próprio Jesus se referia aos exorcistas:
Mt 12,27s: “Se eu expulso os demônios por Beelzebu, por quem os expulsam os vossos adeptos?… Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós”.
Jesus mesmo praticava exorcismos, como se depreende deste texto e de outros, quais Mt 9,32-34; 12, 22-24; 15, 21-28; Mc 1,23-28; Lc 8,28s; 13,10.17.
Notemos, aliás, que os evangelistas distinguem entre possessos e doentes, embora alguns dos casos de possessão, no Evangelho, se assemelhem a doenças. Ver Mc 1,34; Mt 8,16s; Lc 6,18 e especialmente Lc 4,40s:
“Ao pôr do sol, todos os que tinham doentes atingidos de males diversos, traziam-nos e Jesus curava-os. De um grande número saiam também demônios, gritando: “Tu és o Filho de Deus!”
Os exorcismos realizados por Jesus eram o sinal de que se ia destruindo o império de Satanás e se inaugurava o Reino de Deus: Mt 12,28; Jo 12,31. Ver Lc 10, 17-20:
“Os setenta e dois voltaram com alegria, dizendo: “Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome”. Ele lhes disse: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago! Eis que eu vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do Inimigo, e nada
vos poderá causar dano. Contudo não vos alegreis porque os espíritos se vos submetem; alegrai-vos, antes, porque os vossos nomes estão inscritos nos céus”.
À vista deste texto e de outros, não se pode dizer, com Dallegrave, que “Cristo nunca fez exorcismo, nem tampouco recomendou que os apóstolos o fizessem”. Na verdade, Jesus não fingiu estar diante do maligno nem exerceu uma arte teatral ao exorcizá-lo, como se não houvesse possessão diabólica. Adaptando-se a uma crença “errônea” dos seus contemporâneos, Jesus teria confirmado os judeus no seu “erro” e teria transmitido aos cristãos a falsa noção de possessão diabólica. Ora Jesus veio justamente para a missão de dissipar os erros e dar testemunho da verdade – o que não se compatibiliza com fingimento e teatralidade vazia:
Jo 18,37: “Para isto nasci e para isto vim ao mundo para dar testemunho da verdade. Quem é da verdade, escuta a minha voz”.
Por conseguinte, é forçoso admitir que Jesus, Mestre da Verdade, não “fez palhaçadas”, mas confirmou a crença na possessão diabólica e efetuou exorcismos.
Após Jesus Cristo, a Igreja durante vinte séculos (até hoje) afirmou e afirma a possibilidade da possessão diabólica; Ela tem também um Ritual de Exorcismo Solene, a ser utilizado em casos precisos. Todavia o diagnóstico de possessão diabólica hoje em dia é mais minucioso do que outrora, pois se sabe que vários fenômenos então inexplicáveis eram atribuídos à ação do Maligno, ao passo que atualmente são reconhecidos como fenômenos meramente humanos ou psicológicos. Em conseqüência, recomenda-se cautela a fim de não se admitir precipitadamente a possessão diabólica.
Ainda se pode notar no artigo de Dallegrave uma grave imprecisão: a história do Antigo Testamento teria durado 5.000 anos, quando na verdade a vocação de Abraão, que dá origem a tal história, ocorreu no século XIX a.C!
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