A celebração da Eucaristia é o centro da espiritualidade do cristão. A Eucaristia é a fonte e o ápice da vida e do culto da Igreja. Ao participarmos da Eucaristia fazemos memória do sacrifício de Cristo na Cruz, como assevera o Concílio de Trento (1545 a 1563). Assim, a Eucaristia é sacrifício, mesa eucarística, memória pascal de Cristo. A Instrução Geral do Missal Romano afirma que: “A celebração da Missa, como ação de Cristo e do povo de Deus hierarquicamente ordenado, é o centro de toda a vida cristã tanto para a Igreja universal como local e também para a vida dos fieis” (IGMR 16).
Mas será que nossas celebrações manifestam de fato a centralidade e o primado de Deus? O homem foi criado para viver em plena comunhão com Deus, mas com o pecado, o homem e a mulher perderam a graça original. A História da Salvação nos revela que na plenitude dos tempos, o Pai, enviou o seu amado Filho para recuperar a graça perdida e ser o salvador. Após, o obra da salvação de Cristo ter-se realizado, o “homem novo” – o cristão – pode retomar a comunhão plena com Deus e viver o primado de Deus. O mandamento do amor inaugurado por Cristo exige amar a Deus de todo o coração, com todo o entendimento e com toda a força (Mc 12, 30). O Evangelho exige o primado de Deus na vida do homem, mas e nossas celebrações litúrgicas?
À luz da Constituição litúrgica Sacrossanctum Concilium – que foi o primeiro documento conciliar, publicado em Roma no dia 4 de dezembro de 1963 -, podemos dizer que é: “uma ação sagrada pela qual através de ritos sensíveis se exerce, no Espírito Santo, o múnus sacerdotal de Cristo, na Igreja e pela Igreja, para a santificação do homem e a glorificação de Deus” (SC 7). Vamos aprofundar cada aspecto da afirmação da Sacrossanctum Concilium:
- Ação sagrada – Quer dizer: ação de uma comunidade – Igreja onde Cristo age. É sagrada, pois comunica Deus e por ela nos comunicamos com ele. E ai entra a fé e o amor.
- Ritos sensíveis – Esta comunicação com Deus, por Cristo e em Cristo se faz através de sinais e símbolos, isto é, de forma sacramental.
- O múnus sacerdotal de Cristo - É ele (Cristo) quem age e continua a realizar a obra da salvação de modo que todos possam realizar a sua vocação sacerdotal recebida no Batismo. A ação sagrada é de Cristo. É Ele o sacerdote principal – o oferente e a oferta.
- Na Igreja e pela Igreja – Cristo não age sozinho, mas se faz presente na e pela ação da Igreja.
- Para a santificação do homem e a glorificação de Deus – Estes são os dois movimentos de cada ação litúrgica: o movimento de Deus para o homem – a santificação. E o movimento do homem para Deus – a glorificação.
Muitos querem uma liturgia que tem que a todo custo ser agradável a nossos gostos pessoais, e em nada se questionam se a centralidade de Deus está em primeiro lugar É óbvio que na liturgia a assembleia participar, mas de forma frutuosa e consciente; não tomemos a participação como um “show”. Sempre devemos - padres e leigos - nos questionar: nossa liturgia coloca o primado de Deus e é participativa e frutuosa. Isto tudo que dissemos não quer corroborar uma liturgia alienada, sem o compromisso com a justiça social e olhar para os excluídos, que são exigências intrínsecas do Evangelho. Uma liturgia sem a vida, sem o compromisso com o outro e a construção de mundo justo e fraterno, não é um culto agradável a Deus, como tantas vezes denunciaram os profetas veterotestamentários.
Por fim, ao término desta pequena reflexão acerca do primado de Deus no culto litúrgico, faz-se necessário refletir com o então cardeal Josef Ratzinger: “A liturgia não é um show, um espetáculo que necessite de diretores geniais e de atores de talento. A liturgia não vive de surpresas simpáticas, de invenções cativantes, mas de repetições solenes.
Não deve exprimir a atualidade e o seu efêmero, mas o mistério do Sagrado. Muitos pensaram e disseram que a liturgia deve ser feita por toda comunidade para ser realmente sua. É um modo de ver que levou a avaliar o seu sucesso em termos de eficácia espetacular, de entretenimento. Desse modo, porém, terminou por dispersar o propium litúrgico que não deriva daquilo que nós fazemos, mas, do fato que acontece. Algo que nós todos juntos não podemos, de modo algum, fazer.
Na liturgia age uma força, um poder que nem mesmo a Igreja inteira pode atribuir-se: o que nela se manifesta e o absolutamente Outro que, através da comunidade chega até nós. Isto é, surgiu a impressão de que só haveria uma participação ativa onde houvesse uma atividade externa verificável: discursos, palavras, cantos, homilias, leituras, apertos de mão… Mas ficou no esquecimento que o Concílio inclui na actuosa participatio também o silêncio, que permite uma participação realmente profunda, pessoal, possibilitando a escuta interior da Palavra do Senhor. Ora desse silêncio, em certos ritos, não sobrou nenhum vestígio”.
A nossa liturgia deve manifestar o primado de Deus, mas como? Fica a dica do Papa Bento XVI, que escreve sua Opera omnia, dedicado à liturgia afirma: "A ideia de que o sacerdote e povo deveriam, na oração, olhar um para o outro, surgiu apenas no cristianismo moderno e é completamente estranha no antigo. Sacerdote e povo certamente não rezam um para o outro, e sim para o único Senhor. Por isso na oração todos olham para mesma direção: ou para o Oriente como símbolo cósmico do Senhor que vem, ou, nos lugares onde isso não é possível, para uma imagem de Cristo na abside, para uma cruz, ou simplesmente para o céu, como fez o Senhor durante a oração sacerdotal da última noite antes da Paixão (Jo 17, 1).
E não se diga que a imagem do crucifixo obscurece a visão dos fiéis em relação ao celebrante. Os fiéis não devem olhar o celebrante, nesse momento litúrgico! Devem olhar para o Senhor! Assim aquele que preside a celebração deve poder olhar para o Senhor. A cruz não impede a visão; ao contrário, lhe abre o horizonte para o mundo de Deus, e a faz contemplar o mistério, a introduz no céu, de onde provém, a única luz capaz de dar sentido à vida neste mundo.
Em nosso tempo entrou em voga a expressão "celebrar voltado para o povo". É aceitável dizer assim, quando a expressão entende descrever o aspecto topográfico, devido ao fato que hoje o sacerdote, pela colocação do altar, se encontra em posição frontal em relação à assembleia. Mas, não se poderia absolutamente aceitar, se tal expressão tivesse conteúdo teológico.
De fato, a Missa, teologicamente falando, está sempre voltada para Deus, através de Cristo nosso Senhor, e seria grave erro imaginar que a orientação principal da ação sacrifical fosse a comunidade. Por isso, tal orientação- voltada para o Senhor- deve animar em cada um a participação litúrgica interior. E é igualmente importante que isso possa ser bem visível também no sinal litúrgico”.
Ms. VANDERSON DE SOUSA SILVA
MESTRE EM TEOLOGIA LITÚRGICA Rio de Janeiro
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