Em
vista do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, 27 de
janeiro, foi celebrada no domingo (26) uma missa na catedral da Sé na
qual também estiveram presentes numerosos membros da comunidade judaica
de São Paulo.
“Não viu nenhum homem a seu irmão e não se levantou nenhum homem de
seu lugar” (Êxodo, 10:23). O versículo que descreve a praga da escuridão
que se abateu sobre os egípcios por três dias consecutivos abre margem
para uma interpretação metafórica daquela situação.Os escravizadores tinham perdido toda a sensibilidade e ficaram completamente cegos para os sofrimentos dos filhos de Israel; não eram mais capazes de enxergar a humanidade do próximo, ainda que esta estivesse a poucos centímetros de seus olhos.
Talvez a praga da escuridão que se abateu sobre o Faraó e seu povo não se refira à ausência de luz, mas à falta total de sensibilidade e consideração diante dos sofrimentos alheios. Haviam perdido a capacidade de se importar e ninguém se moveu de seu lugar; todos aceitaram as ordens do Faraó com cegueira covarde. Por isso diz o Pentateuco: “Nenhum homem viu seu irmão”.
Após 3.500 anos, a Europa nazifascista mostrou não ter aprendido a lição. Os novos egípcios requintaram seus métodos de tortura e assassinato. A escravidão passou para os campos de trabalho forçado. Não apenas meninos recém-nascidos foram mortos, mas todos os que a loucura ariana considerava inúteis ou inferiores.
Diversos pensadores questionam como Deus permitiu que o Holocausto acontecesse. Como se pode ainda acreditar em Deus depois de Auschwitz? Onde estava Deus num dos capítulos mais terríveis da história?
As respostas são contraditórias. Para Richard Rubenstein, a única resposta intelectualmente honesta para o Holocausto é a rejeição de Deus e o reconhecimento de que toda a existência é sem sentido. Para ele, Deus não se importa com o mundo. Já Emil Fackenheim sugere que se olhe atentamente para o Holocausto e se encontre nele uma nova revelação de Deus; rejeitar Deus por causa do Holocausto significaria dar vitória póstuma a Hitler. Segundo o rabino Eliezer Berkovits, o livre-arbítrio humano só é possível quando Deus permanece oculto; intervindo na história, Deus anularia a liberdade humana e sua capacidade de fazer escolhas. Para o rabino Harold Kushner, Deus não é onipotente e, portanto, não haveria contradição entre a existência de um Deus bom e a maldade de certos humanos. Na peça “O Julgamento de Deus”, Elie Wiesel coloca o Criador no banco dos réus, com argumentos contra e a favor de Deus. A obra reflete experiências vividas pessoalmente por Wiesel durante a sua adolescência em Auschwitz.
Diante das tragédias humanas, com frequência, buscamos causas que vão além do âmbito das decisões humanas. Será essa a saída adequada? Questionar-se sobre o lugar de Deus no Holocausto é importante para toda pessoa de fé.
Mas, como refletiu Bento 16 na visita ao campo de Auschwitz, em 2006: “Somos incapazes de perscrutar o segredo de Deus; nós vemos apenas fragmentos e enganamo-nos se pretendemos arvorar-nos em juízes de Deus e da história”. No entanto, devemos fazer-nos este outro questionamento, bem mais incômodo: onde estava o homem?
A Shoá não foi obra de Deus ou de anjos malvados: foi de homens, com suas ideologias e sistemas desumanos, de pessoas incapazes de enxergar o outro: “Não viu nenhum homem a seu irmão e não se levantou nenhum homem de seu lugar”.
Somente quando buscamos e assumimos a responsabilidade do homem nos tornamos senhores da história e desenvolvemos a possibilidade de educar as novas gerações para a moderação, o respeito e a paz.
MICHEL SCHLESINGER, 36, é rabino da Congregação Israelita Paulista e representante da Confederação Israelita do Brasil para o diálogo inter-religioso
CARDEAL DOM ODILO PEDRO SCHERER, 64, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é arcebispo de São Paulo.
Publicado originalmente no periódico Folha de São Paulo.Fonte: http://www.votocatolico.net.br/artigos/onde-estava-o-homem
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