“Os cristãos ó rei, vagando e buscando,
acharam a verdade conforme pudemos achar em seus livros, estão mais
próximos que os outros povos da verdade e do conhecimento certo, pois
creem no Deus criador do céu e da terra, naquele em quem tudo é e de
quem tudo procede, que não tem outro Deus por companheiro e do qual eles
mesmos receberam os preceitos que guardam no coração, com a esperança e
expectativa do século futuro. Por isso, não cometem adultério, não
praticam a fornicação, não levantam falso testemunho, não recusam
devolver um depósito, não se apropriam do que não lhes pertence. Honram
pai e mãe, fazem bem ao próximo e, quando em juízo, julgam com equidade.
Não adoram os ídolos – semelhantes aos homens. O que não desejam lhes
façam os outros não o fazem também; não comem alimentos de sacrifícios
idolátricos, pois são puros. Exortam os que os afligem, a fim de
fazê-los amigos. Suas mulheres, ó rei, são puras como virgens, suas
filhas são modestas. Seus homens se abstém de toda união ilegítima e da
impureza, esperando a retribuição que terão no outro mundo. Aos
escravos e escravas, bem como a seus filhos – se os têm – persuadem a
tornar-se cristãos, em razão do amor que lhes dedicam, e quando se
tornam, chamam-nos indistintamente irmãos. Não adoram a deuses estranhos
e vivem com humildade e mansidão, sem qualquer mentira entre eles.
Amam-se uns aos outros, não desprezam as viúvas. Protegem o órfão dos
que os tratam com violência. Possuindo bens, dão sem inveja aos que nada
possuem. Avistando o forasteiro, introduzem-no na própria casa e se
alegram por ele, como se fora verdadeiro irmão: pois se dão o apelativo
de irmãos, não segundo o corpo, mas segundo o espírito e em Deus. Se
algum pobre passa deste mundo, alguém sabendo, encarrega-se – na medida
de suas forças – de dar-lhe sepultura. Se conhecem um encarcerado ou
oprimido por causa do nome do seu Cristo, ficam solícitos a seu respeito
e se possível libertam-no.
Quando um pobre ou necessitado surge
entre eles e não possuem abundância de recursos para ajudá-lo, jejuam
dois ou três dias para obter o necessário para o seu sustento. Guardam
com diligência os preceitos do seu Cristo, vivem reta e modestamente –
conforme lhes ordenou o Senhor Deus. Todas as manhãs e horas louvam e
glorificam a Deus pelos benefícios recebidos, dando graças por seu
alimento e bebida. Mesmo se acontece que um justo – entre eles – passa
deste mundo, alegram-se e dão graças a Deus, ao acompanharem o cadáver,
como se emigrasse de um lugar para outro. E assim como quando nasce um
filho louvam a Deus, também se ele morre na infância glorificam a Deus,
por quem atravessou o mundo sem pecados. Mas vendo alguém morrer na
malícia e nos pecados, choram amargamente e gemem por ele, supondo´o ir
ao castigo. Tal é, ó rei, a constituição da lei dos cristãos e tal a sua
conduta”. (Apologia).
Da Carta a Diogneto:
Esta Carta é um dos mais antigos
documentos que conta a vida dos primeiros cristãos; é de um autor
desconhecido, que escreveu a Diogneto; é do século II.
Em seguida, temos um trecho da Carta:
“Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a
quem é devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida
[Rom 13,7]. Os cristãos residem em sua própria pátria, mas como
residentes estrangeiros. Cumprem todos os seus deveres de cidadãos e
suportam todas as suas obrigações, mas de tudo desprendidos, como
estrangeiros… Obedecem as leis estabelecidas, e sua maneira de viver vai
muito além das leis… Tão nobre é o posto que lhes foi por Deus
outorgado, que não lhes é permitido desertar” (5,5; 5,10;6,10). Os
cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pela língua, ou pelos
costumes. Não habitam cidades próprias, não se distinguem por idiomas
estranhos, não levam vida extraordinária. Além disso, sua doutrina não
encontraram em pensamento ou cogitação de homens desorientados. Também
não patrocinam, como fazem alguns, dogmas humanos… Qualquer terra
estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Tem a mesa
em comum, não o leito. Vivendo na carne, não vivem segundo a carne. Na
terra vivem, participando da cidadania do céu. Obedecem às leis, mas as
ultrapassam em sua vida. Amam a todos, sendo por todos perseguidos (…). E
quando entregues à morte, recebem a vida. Na pobreza, enriquecem a
muitos; desprovido de tudo, sobram-lhes os bens. São desprezados, mas no
meio das desonras, sentem-se glorificados. Difamados, mas justo;
ultrajados, mas benditos, injuriados prestam honra. Fazendo o bem são
punidos como malfeitores; castigados, rejubilam-se como revificados. Os
judeus hostilizam-nos como alienígenas; os gregos os perseguem, mas
nenhum de seus inimigos pode dizer a causa de seu ódio. Para resumir,
numa palavra, o que é a alma no corpo, são os cristãos no mundo: como
por todos os membros do corpo está difundida a alma, assim os cristãos,
por todas as cidades do universo (…)”.
Sobre o Martírio dos cristãos
Santo Inácio de Antioquia (+107):
“De viagem da Síria para Roma estou
lutando com feras, por terra e por mar, de noite e de dia. Acorrentado a
dez leopardos, os milicianos da minha escolta militar… Espero poder
enfrentar com alegria as feras que estão preparando para mim, e peço a
Deus que eu possa encontrá-las prontas a lançarem-se sobre mim. Se não
quiserem, eu mesmo as instigarei para que me devorem num instante (…).
Vocês tenham compaixão de mim. Eu sei muito bem o que é útil para mim.
Somente agora começo a ser discípulo. Não me deixo impressionar por
coisa alguma, visível ou invisível, para poder unir-me a Cristo Jesus.
Fogo, cruzes, feras, lacerações, desconjuntura dos ossos, o corpo
reduzido a pedaços, as piores torturas caiam sobre mim: importante é
unir-me a Jesus Cristo. Que proveito poderão dar-me os prazeres do mundo
ou os reinos da terra? Nenhum. Para mim é melhor morrer por Jesus
Cristo, do que reinar sobre toda a terra. A minha vida é busca contínua
daquele que morreu por nós: quero aquele que por nós ressuscitou. Vejam,
meu nascimento se aproxima. Nada melhor podeis fazer por mim, do que
deixar que eu seja sacrificado a Deus… Rogo-vos, não tenhais para comigo
uma benevolência inoportuna! Deixem-me ser pasto das feras, pelas quais
chegarei a Deus. Sou o trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para
tornar-me o pão duro de Cristo… Quando o mundo não puder mais ver o meu
corpo, serei verdadeiramente discípulo de Cristo.” (Carta aos Romanos).
Diante do martírio no anfiteatro de
Esmirna “Eu te bendigo [Senhor] por me terdes julgado digno deste dia e
dessa hora, digno de ser contado no número dos vossos mártires…
guardastes vossa promessa, Deus da felicidade e da verdade. Por essa
graça e por todas as coisas, eu vos louvo, vos bendigo e vos glorifico
pelo eterno e celeste sacerdote, Jesus Cristo, vosso Filho bem amado.
Por Ele, que está conosco e com o Espírito, vos seja dada a glória,
agora e por todos os séculos. Amém.” (Martírio 14,2-3)
Martírio dos primeiros cristãos de Roma
Na primeira perseguição contra a Igreja, desencadeada pelo imperador
Nero, depois do incêndio da cidade de Roma no ano 64, muitos cristãos
foram martirizados com atrozes tormentos. Este fato é testemunhado pelo
escritor pagão Tácito (annales 15,44) e por São Clemente, bispo de Roma,
papa, na sua Carta ao Coríntios (cap.5-6), do ano 96: “Deixemos de lado
os exemplos dos antigos e falemos dos nossos atletas mais recentes.
Apresentemos os generosos de nosso tempo. Vítimas do fanatismo e da
inveja, sofreram perseguição e lutaram até à morte. Tenhamos diante dos
olhos os bons apóstolos. Por causa de um fanatismo iníquo, Pedro teve de
suportar duros tormentos, não uma ou duas vezes, mas muitas; e depois
de sofrer o martírio, passou para o lugar que merecia na glória. Por
invejas e rivalidades, Paulo obteve o prêmio da paciência: sete vezes
foi lançado na prisão, foi exilado e apedrejado, tornou-se pregoeiro da
Palavra no Oriente e no Ocidente, alcançando assim uma notável reputação
por causa da sua fé. Depois de ensinar ao mundo inteiro o caminho da
justiça e de chegar até os confins do ocidente, sofreu o martírio que
lhe infligiram as autoridades. Partiu, pois, deste mundo para o lugar
santo, deixando-nos um perfeito exemplo de paciência.
A estes homens, mestres de vida santa,
juntou-se uma grande multidão de eleitos que, vítimas de um ódio iníquo
sofreram muitos suplícios e tormentos, tornando-se, desta forma, para
nós um magnífico exemplo de fidelidade. Vítimas do mesmo ódio, mulheres
foram perseguidas, como Danaides e Dircéia. Suportando graves e
terríveis torturas, correram até o fim a difícil corrida da fé e mesmo
sendo fracas de corpo, receberam o nobre prêmio da vitória. O fanatismo
dos perseguidores separou as esposas dos maridos, alterando o que disse
nosso pai Adão: É osso dos meus ossos e carne de minha carne (cf. Gn
2,23). Rivalidades e rixas destruíram grandes cidades e fizeram
desaparecer povos numerosos. Escrevemos isto, não apenas para vos
recordar os deveres que tendes, mas também para nos alertarmos a nós
próprios. Pois nos encontramos na mesma arena e combatemos o mesmo
combate. Deixemos as preocupações inúteis e os vãos cuidados, e
voltemo-nos para a gloriosa e venerável regra da nossa tradição.
Consideramos o que é belo, o que é bom, o
que é agradável ao nosso Criador. Fixemos atentamente o olhar no sangue
de Cristo e compreendamos quanto é precioso aos olhos de Deus seu Pai
esse sangue que, derramado para nossa salvação, ofereceu ao mundo
inteiro a graça da penitência.”
Martírio de São Policarpo (+156)
Carta Circular da Igreja de Esmirna
“A Igreja de Deus, estabelecida em
Esmirna, à Igreja de Deus estabelecida em Filomélia e a todas as
comunidades da Igreja santa e universal, onde quer que esteja: a
misericórdia, a paz e a caridade de Deus Pai, de Jesus Cristo nosso
Senhor, superabundem em vós. Escrevemo-vos, irmãos, a respeito dos
mártires e do bem-aventurado Policarpo, cujo martírio foi, por assim
dizer, o selo final, que pôs termo à perseguição. Na verdade, quase
todos os acontecimentos anteriores se efetuaram para que o Senhor nos
mostrasse do céu o martírio narrado no Evangelho. Policarpo esperou
tranquilamente ser entregue, como o Senhor, para que aprendêssemos, com
seu exemplo, a não ter em mira somente o que nos concerne, mas também os
interesses do próximo (Fl 2,4).
Realmente, a caridade verdadeira e firme
consiste em não desejar apenas a própria salvação, mas a dos irmãos.
Felizes, pois, e generosos todos estes martírios que se deram conforme a
vontade de Deus. Pois é dever da nossa piedade tudo atribuir ao poder
de Deus. Deveras, quem não admiraria a generosidade desses mártires, a
sua paciência, e amor ao Mestre? Dilacerados pelos açoites a ponto de se
tornar visível a estrutura íntima da carne, das veias e das artérias,
suportaram tudo com tal firmeza que os circunstantes se compadeciam e
choravam. Eles, porém, chegaram a tanto heroísmo, que de nenhum se ouviu
grito ou se viu lágrima. Assim, esses generosos mártires de Cristo
mostraram que naquela hora em que sofriam não estavam mais no corpo;
mais ainda que o próprio Cristo, presente, se entretinha com eles.
Confiando unicamente na graça de Cristo, desprezavam os sofrimentos do
mundo e, por uma hora de tormento, se resgatavam do castigo eterno. O
fogo dos algozes cruéis parecia´lhes frio; querendo fugir do fogo que
não se apaga eternamente, fitavam com os olhos do coração os bens
reservados aos que perseveram até o fim – “bens que o ouvido não ouviu,
os olhos não viram, nem subiram ao coração do homem”, (1Cor 2,9), mas
que o Senhor lhes mostrava porque já não eram homens e sim anjos. Com a
mesma coragem, outros enfrentaram sofrimentos horríveis; lançados às
feras, estirados sobre conchas marinhas, torturados por toda sorte de
suplícios, que o tirano prolongava para ver se seria possível induzi-los
a renegar. Mas apesar de Satanás ter maquinado muitas coisas contra
eles, graças a Deus nada alcançou.
Pois Germânico fortaleceu pela heroica resistência, no seu maravilhoso combate com as feras, a pusilanimidade de outros.
Querendo o cônsul persuadi-lo a ter
compaixão da sua juventude, Germânico, ao contrário, com pancadas
excitou a fera contra si, na ânsia de livrar-se quanto antes da
convivência daquela gente iníqua e criminosa. Por isso o povo, espantado
diante do heroísmo
dos cristãos, dessa raça que ama a Deus e é amada por ele, gritou: “Abaixo os ateus! (Ateus aqui seriam os cristãos). Tragam Policarpo!” Um apenas, chamado Quinto, frígio e recentemente chegado da Frígia, ao ver as feras, acovardou-se. Esse, justamente, tinha desafiado espontaneamente o poder público e incitado outros a fazerem o mesmo. Mas não resistiu às instâncias repetidas do procônsul, fez juramento e ofereceu. Eis por que, irmãos, não louvamos os que se entregam espontaneamente a si mesmo; de mais a mais não é isso que ensina o Evangelho. Policarpo, o mais admirável longe de se perturbar ao receber esta notícia, quis permanecer na cidade. Muitos, entretanto, o persuadiram a retirar-se. E ele se retirou para uma pequena casa de campo, a pouca distância, onde permaneceu, com poucos amigos, nada fazendo senão rezar dia e noite por todos e por todas as igrejas conforme o seu hábito. E quando rezava teve uma visão, três dias antes de ser preso. Viu seu travesseiro pegando fogo.
dos cristãos, dessa raça que ama a Deus e é amada por ele, gritou: “Abaixo os ateus! (Ateus aqui seriam os cristãos). Tragam Policarpo!” Um apenas, chamado Quinto, frígio e recentemente chegado da Frígia, ao ver as feras, acovardou-se. Esse, justamente, tinha desafiado espontaneamente o poder público e incitado outros a fazerem o mesmo. Mas não resistiu às instâncias repetidas do procônsul, fez juramento e ofereceu. Eis por que, irmãos, não louvamos os que se entregam espontaneamente a si mesmo; de mais a mais não é isso que ensina o Evangelho. Policarpo, o mais admirável longe de se perturbar ao receber esta notícia, quis permanecer na cidade. Muitos, entretanto, o persuadiram a retirar-se. E ele se retirou para uma pequena casa de campo, a pouca distância, onde permaneceu, com poucos amigos, nada fazendo senão rezar dia e noite por todos e por todas as igrejas conforme o seu hábito. E quando rezava teve uma visão, três dias antes de ser preso. Viu seu travesseiro pegando fogo.
Voltando-se para os que estavam com ele,
disse-lhes: ” Devo ser queimado vivo”. Como prosseguissem em buscá-lo,
transferiu-se Policarpo para outra casa de campo. Logo depois chegaram
seus perseguidores, e como não o achassem, prenderam dois jovens
escravos, um dos quais, vencido pela tortura, lhes deu a indicação. Já
então não lhe era mais possível escapar, uma vez que os traidores eram
de sua própria casa. O chefe de polícia, que com razão tinha o nome de
Herodes, apressou-se em conduzir Policarpo
para o estádio. Assim devia ele obter sua parte na herança do Cristo a
quem aderira; ao passo que os traidores, parte no castigo de Judas. Numa
Sexta-feira, mais ou menos pela hora da ceia, partiram os perseguidores
com um destacamento de cavalaria, armado na forma habitual, “como se
procurassem um ladrão” (Mt 26,55). Servia-lhes de guia um escravo.
Chegando alta noite foram encontrar Policarpo no primeiro andar da
pequena casa. Teria tido tempo de buscar outro refúgio; mas não o quis,
dizendo: “Seja feita a vontade de Deus”. Informado da presença dos
soldados, desceu e conversou com eles, que ficaram pasmos vendo sua
idade e sua calma, e perguntaram entre si por que capturar com tanto
empenho um ancião como aquele.
Policarpo, entretanto, mandou
servir´lhes comida e bebida à vontade e pediu-lhes apenas o prazo de uma
hora para rezar livremente. Tendo eles consentido, Policarpo começou de
pé a sua oração; a graça divina transbordava nele de tal maneira que
pelo espaço de duas horas não pôde interrompê-la. Todos os que ouviram
se encheram de espanto e muitos se arrependeram de perseguir a um ancião
tão cheio do amor de Deus. Concluindo a oração, na qual se lembrara de
todos que havia conhecido, grandes e pequenos, nobres e humildes e da
Igreja católica de toda parte do mundo, chegou o momento da partida.
Montando um jumento foi conduzido para a cidade, já na manhã do grande
Sábado. Vieram a seu encontro Herodes, o chefe de polícia, e Niceto, seu
pai, os quais o fizeram sentar-se consigo no carro e tentaram
persuadi-lo: “Que mal pode haver em dizer: César é Senhor, oferecer o
sacrifício, e dizer as coisas que o seguem, para salvar-se?” A princípio
não respondeu, mas como insistissem, disse-lhes Policarpo: “Não teria o
que me aconselhais! “Perdida assim, a esperança de seduzi-lo,
insultaram-no com palavras ameaçadora e jogaram-no do carro com tanta
precipitação que feriu na queda a parte anterior da perna. Policarpo nem
sequer voltou-se, mas prosseguiu alegremente o caminho para o estádio,
depressa como se nada houvesse sofrido. Aí, reinava tal tumulto que
ninguém podia fazer-se ouvir. Quando ele entrou, foi ouvida uma voz do
céu, dizendo: “Coragem, Policarpo, seja homem!” Ninguém viu quem falou,
mas a voz foi ouvida pelos irmãos presentes.
No momento em que Policarpo chegou e a
multidão soube que estava preso, aumentou o barulho. Foi levado à
presença do procônsul, que iniciou o interrogatório, perguntando se de
fato era Policarpo. Recebida a resposta afirmativa tentou persuadi-lo a
renegar a fé: “Respeita a tua velhice”. E seguiram-se os argumentos
usuais, em tais circunstâncias. “Jura pela sorte de César, renega as
tuas ideias e dizer: Morte aos ateus!” Policarpo então, voltando-se para
a multidão do estádio, fixando firmemente com um olhar severo aquela
ralé criminosa, elevou a mão contra ela e disse, com os olhos voltados
para o céu: “Morte aos ateus”. Insistiu ainda o procônsul: “Fazer o
juramento e eu te libertarei. Insulta ao Cristo”. Respondeu Policarpo:
“Há oitenta e seis anos que o sirvo e nunca me fez mal algum. Como
poderia blasfemar meu Rei e Salvador?” Como de novo insistisse, dizendo:
“Jura pela sorte de César”, replicou Policarpo: Se esperas, em vão, que
vá jurar pela sorte de César, simulando ignorares quem sou, ouve o que
te digo com franqueza: sou cristão! Se, por acaso, quiseres aprender a
doutrina do cristianismo, concede-me o prazo de um dia e presta
atenção!” Disse-lhe o procônsul: “Experimenta persuadir o povo”.
Respondeu-lhe Policarpo: ” Julgo que diante de ti devo explicar´me, pois
aprendemos a honrar devidamente os princípios e as autoridades
estabelecidas por Deus quando não são nocivas à nossa fé. Quanto àquela
gente, porém, não a julgo digna de ouvir a minha justificação”. Nem com
isso desistiu o procônsul: “Tenho feras”, disse, “às quais te lançarei,
se não te converteres”.
“Faze-as vir”, respondeu Policarpo; “impossível para nós uma
conversão do melhor ao pior; o bem é poder passar dos males à justiça”.
De novo, o procônsul: “Se não te convertes, se desprezas as feras, eu te
farei consumir pelo fogo”. Policarpo: “Ameaças com o fogo que arde um
momento e logo se apaga. Não conheces o fogo do juízo que há de vir e da
pena eterna onde serão queimados os inimigos de Deus. Mas, que esperas
ainda? Dá a sentença que te apraz!” Proferindo estas e outras palavras,
transbordaram nele a generosidade e a alegria e no seu rosto
resplandeceu a graça. Não somente o interrogatório não o perturbou, mas
foi o procônsul quem perdeu a calma. Este mandou então o arauto
proclamar por três vezes no estádio: “Policarpo acaba de confessar-se
cristão”. Mal tinha anunciado, a multidão de gentios e judeus de Esmirna
prorrompeu em gritos furiosos e desenfreados: “Eis o mestre da Ásia, o
pai dos cristão, o blasfemador dos nossos deuses, o que induz tantos
outros a não mais honrá-los com sacrifício e orações”. E assim gritando,
exigiram do asiarca Filipe que lançasse um leão sobre Policarpo. Ele
recusou-se, observando que isso era impossível, pois os combates de
feras haviam sido proibidos. Ocorreu imediatamente outra idéia à
multidão gritando, a uma só voz: “Que Policarpo seja queimado vivo!” Com
efeito, era preciso que se cumprisse a visão do travesseiro. Tinha
visto em chamas, quando estava em oração e voltando-se para os fiéis que
o rodeavam dissera em tom profético: “Devo ser queimado vivo”. E isso
foi feito mais rapidamente do que falado. O povo saiu à busca de lenha
nos armazéns e nos banhos, e, como sempre nestas ocasiões, os judeus
eram os mais ardorosos. Armada a fogueira, Policarpo despiu as suas
vestes, desatou o cinto, tentou desamarrar as sandálias, o que já não
fazia, pois os fiéis sempre se apressavam em ajudá-lo, no desejo de
tocar-lhe o corpo, no qual muito antes do martírio já brilhava o
esplender da santidade de sua vida.
Rapidamente cercaram-no com as coisas
trazidas para o fogo. Quando os algozes quiseram amarrá-lo, disse-lhes:
“Deixa-me livre. Quem me dá forças para suportar o fogo, dar-me-á
igualmente a de ficar nele imóvel sem necessitar deste vosso cuidado”.
Não o fixaram, amarram-lhe apenas as mãos. Policarpo, de mãos ligadas às
costas, cordeiro de escolha tomado de um grande rebanho para o
sacrifício, holocausto agradável preparado ao Senhor, olhando o céu
disse: “Senhor, Deus onipotente, Pai de Jesus Cristo, teu Filho amado e
bendito, pelo qual te conhecemos: Deus de toda a família dos justos que
vive na tua presença – eu te bendigo por me haveres julgado digno deste
dia e desta hora, digno de participar no número dos mártires, do cálice
do teu Cristo para a ressurreição da vida eterna do corpo e da alma, na
incorruptibilidade do Espírito Santo! Recebe-me, hoje, com eles, na tua
presença como sacrifício agradável e perfeito e o que me havias
preparado e revelado realiza-o agora, Deus da verdade.
Por isto e por tudo eu te louvo, te
bendigo, te glorifico por teu Filho, Jesus Cristo, nosso eterno Sumo
Sacerdote no céu. Por ele, com ele e o Espírito Santo, glória seja dada a
ti, agora e nos séculos futuros. Amém”. Pronunciado este amém e
completa a oração, os algozes atearam o fogo e levantou-se uma grande
chama. Nós – a quem foi dado ver – vimos um prodígio (e para anunciá-lo
aos outros fomos poupados), o fogo tomou uma forma de cúpula, como a
vela de um barco batido pelo vento e envolveu o corpo do mártir por
todos os lados. Ele estava no meio, não como carne queimada, mas como um
pão que se assa ou como ouro ou para candentes, na fornalha. Sentimos
então um odor suave como o do incenso ou de outra essência preciosa.
Vendo, afinal que o fogo não conseguia consumir o corpo, os ímpios
mandaram o executor transpassá-lo com o punhal. E quando isto foi feito,
saiu da ferida tal quantidade de sangue que apagou o fogo. E toda a
multidão ficou pasma ao verificar tão grande diferença entre os infiéis e
os eleitos. Um destes era certamente Policarpo, o admirável mártir
bispo da Igreja católica de Esmirna, que, em nossos dias foi
verdadeiramente apóstolo e profeta, pela doutrina, pois toda a palavra
saída da sua boca já foi ou será realizada.
Mas o espírito maligno, invejoso,
perverso adversário do povo dos justos, conhecendo a vida de Policarpo,
imaculada desde o começo, e vendo que agora, depois do seu admirável
martírio, recebera a coroa da imortalidade e entrara na posse da
recompensa
eterna, que ninguém poderia mais disputar ou roubar, fez tudo que pôde
para impedir que seu corpo fosse levado por nós, embora muitos
desejassem possuir seus santos despojos, Satanás sugeriu a Nicete, pai
de Herodes e irmão de Alceu, que fosse ter com o governador para
pedir-lhe que não entregasse o corpo. “Seriam capazes”, disse Niceto,
“de abandonar o crucificado, para adorar a Policarpo”! isse tudo isso
instigado e apoiado pelos judeus, que nos espiavam quando queríamos
tirar o corpo do fogo. Ignoravam que nunca poderemos abandonar o Cristo
que sofreu para a salvação dos que se salvam no mundo inteiro, inocente
pelos pecadores. Como havíamos de adorar a outro? Ao Cristo adoramos
como Filho de Deus, aos mártires amamos como discípulos e imitadores do
Senhor, dignos da nossa veneração pela fidelidade inquebrantável ao seu
Rei e Mestre.
Oxalá pudéssemos unir-nos a eles e
tornar-nos seus condiscípulos! Vendo o centurião a oposição dos judeus,
fez queimar publicamente o corpo, conforme o costume pagão. Deste modo
pudemos mais tarde recolher seus restos, mais preciosos do que pedras
raras e mais valiosos do que ouro, para depositá-los em lugar
conveniente, onde todos, quando possível, nos reunimos com a ajuda do
Senhor, para celebrar com alegria e júbilo o dia do seu nascimento pelo
martírio, em memória dos que combateram antes de nós, preparando-nos e
fortificando-nos para as lutas futuras. Eis a história do bem-aventurado
Policarpo. Com os outros cristão de Filadélfia foi o duodécimo
martirizado em Esmirna. Mas dele principalmente se conservou a memória, e
até os pagãos falam em toda parte. Não foi somente mestre pela
doutrina, foi mártir extraordinário, cujo martírio conforme o Evangelho
de Cristo todos desejam imitar.
Triunfou sobre o governador iníquo por
sua paciência e conquistou assim a coroa da incorruptabilidade. Por isso
participa da alegria dos apóstolos e dos justos, glorifica a Deus, Pai
todo-poderoso, e bendiz a nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador das nossas
almas e guia dos nossos corpos, Pastor da Igreja católica espalhada
pela terra. Pedistes uma narração pormenorizada dos acontecimentos. Mas
por enquanto fizemos redigir, por nosso irmão Marcião, somente um
resumo. Lida esta carta mandai-a aos irmãos que moram mais longe para
que também louvem ao Senhor pelas escolhas que faz entre os seus servos.
A Deus, que na sua graça e liberalidade pode fazer entrar no seu reino
eterno a todos nós por Jesus Cristo, seu Filho unigênito – glória,
honra, poder e majestade pelos séculos! Saudai todos os santos.
Saudações dos nossos e de Evaristo, que escreve esta carta, e de toda a
sua casa.
O santo Policarpo sofreu o martírio no
dia dois do mês Xanthicos (22 de fevereiro), sétimo dia antes das
calendas de Março, num Sábado, à hora oitava (2 horas da tarde). Quem o
prendeu foi Herodes, sob o pontificado de Filipe de Trales, sendo
procônsul Estácio Quadrado, no reinado eterno de nosso Senhor Jesus
Cristo, a quem sejam glória, honra, majestade e o trono de geração em
geração. Amém.” (Patrologia Grega 5, 1029-1045).
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