quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O nome na Bíblia – EB

biblia0Em síntese: Os antigos atribuíam ao nome de Deus e aos nomes das criaturas valor especial; o nome representava a íntima essência do seu portador. Podia também designar toda a coletividade descendente de um Patriarca.
A linguagem bíblica tem suas peculiaridades, que o leitor deve conhecer para interpretar corretamente as páginas sagradas. Entre outras, está o uso do nome, … nome que tinha significado muito mais amplo do que nas línguas modernas. Nas páginas subsequentes examinaremos tal peculiaridade.
1.  A Filosofia do Nome
A maneira como os autores bíblicos se referem ao nome, seja de Deus, seja das criaturas, chama a atenção; só se pode explicar à luz de concepção dos orientais.
E quais seriam essas concepções?
O nome, para os antigos, não era uma designação arbitrariamente anexa ao seu portador. Ao contrário, tinham-no como a caracterização do indivíduo, a expressão da íntima essência ou de um atributo, de uma função do portador.
1. Alguns povos chegavam mesmo a conceber o nome como parte integrante do indivíduo e como coisa misteriosa, dotada das energias próprias do respectivo sujeito. Em consequência, os indivíduos poderosos, autoridades, heróis, guerreiros, das nações antigas e de tribos atuais não civilizadas não revelavam nem revelam o seu nome, a fim de não comunicar a sua força íntima, o segredo do seu sucesso. Em virtude destas concepções, o nome, na linguagem oriental antiga, podia designar simplesmente o ser ou a vida do indivíduo nomeado.
É de notar, por exemplo, que na principal narrativa babilônica da origem do mundo, para significar que o céu e a terra não existiam, o autor diz que não eram nomeados. “Não ter nome” vem a ser o mesmo que “não ter existência”.
2.  O Nome identificado com o Indivíduo
As concepções orientais eram compartilhadas pelo povo de Israel, ocasionando na Sagrada Escritura modos de falar a nós estranhos, dos quais os mais dignos de nota são os seguintes:
1.  O nome revela o íntimo do portador
É o que se verifica na história de Davi, a quem Abigail se dirige nestes termos:
“Não tenha o meu Senhor cuidados para com… Nabal, pois este é o que o seu nome indica; seu nome é “o Tolo”, e nele há Tolice.” (1Sm 25, 25).
Consequentemente, “mudar o nome” de alguém significa “assinalar-lhe nova função, novo destino na vida”. É o que Deus às vezes faz ao confiar aos homens um encargo de relevo:
Abram = “Pai elevado” torna-se Abraham = “Pai de multidão” (Gn 17, 5);
Jacó = “Suplantador” torna-se Israel = “Homem forte contra Deus” (Gn 35,10);
Raquel chama seu segundo filho Benoni = “Filho da minha dor”, nome que Jacó substituiu por Benjamim = “Filho da direita” (Gn 35,18);
José, após haver salvo da fome o Egito, fica sendo Tsaphnath Paneach = “Provedor da vida”, em egípcio (Gn 41, 45);
o  Senhor Jesus muda o nome de Simão, futuro fundamento da Igreja, para Cephas = “Pedra, Pedro” (Jo 1, 42).
2. O nome é identificado com a própria pessoa ou a existência do respectivo portador:
Conforme Eclo 6, 10, nada vem à existência sem que previamente haja sido pronunciado o respectivo nome. Ao contrário, a criança, que nasce morta, tem o seu nome recoberto pelas trevas (Eclo 6, 4; cf. Sl 40, 6).
Por ocasião do recenseamento preceituado pelo Senhor, Moisés contou nomes ou indivíduos de cada tribo de Israel, como refere o texto de Nm 1, 2-42.
Em Ef 5, 3, São Paulo pede que a fornicação e outros vícios não sejam nomeados entre os cristãos; o que só pode significar:… não tenham existência, não sejam praticados.
3. Em particular nos oráculos proféticos, “ser chamado…” é a mesma coisa que “ser…”. Assim
o futuro Messias será chamado (= será realmente) “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz” (Is 9, 5);
o Deus de Israel é chamado (e é, sem dúvida) “Deus de toda a terra” (Is 54, 5);
Jesus Cristo, conforme o anjo, deveria ser chamado (=seria) “Filho do Altíssimo, Filho de Deus” (Lc 1, 32.35);
S. João Batista seria dito “Profeta do Altíssimo”, função que de fato desempenhou (Lc 1, 76);
os pacíficos serão chamados (= serão) “filhos de Deus” (Mt 5, 9; cf. Mt 5, 19);
a Casa de Deus tem por nome (por conseguinte, é) “Casa de oração” (Mt 21, 3; cf. Is 56, 7);
Jerusalém, segundo os profetas, seria chamada (porque deveras se tornaria) “Cidade fiel” (Is 1, 26), não mais “Abandonada”, mas “Minha complacência pousa sobre ela” (Is 62, 4), “Desejada, Cidade não abandonada” (Is 62,12), “Cidade da verdade, Montanha santa” (Zc 8, 3).
4. O nome sendo empregado como sinônimo da pessoa, atribu em-se-lhe órgãos e atividade:cole_o-cd_s---curso-b_blico
“Eis que o nome de Javé vem de longe,
Sua cólera arde, pesada nuvem se levanta.
Seus lábios respiram o furor
E sua língua é como fogo devorador.
Seu sopro se assemelha à torrente que transborda.
E sobe até a nuca.”
(Is 30, 27s)
5. “Conhecer alguém pelo nome” é conhecer de maneira muito íntima, com especial carinho e interesse. Com efeito, dizia Deus a Moisés:
“Ainda farei o que pedes, pois encontraste graça aos meus olhos, e te conheço por teu nome” (Ex 33, 17; cf. 33, 12);
o Bom Pastor chama as ovelhas pelo nome e as ama a ponto de dar a vida por elas, declara Jesus em Jo 10, 3.11 (note-se o paralelismo entre os dois verbos!).
6.  Visto que o nome era tido como portador da energia, da eficácia, do respectivo sujeito, “colocar o nome” de uma pessoa sobre outra ou sobre alguma coisa equivalia a “envolver tal pessoa ou coisa dentro do raio de ação do nomeado, pôr sob a proteção” ou também “tornar a pessoa ou o objeto posse, propriedade do nomeador”.
Assim é que, quando o sacerdote abençoava a multidão, “colocava o nome de Javé sobre o povo, e o Senhor o abençoava realmente” (Nm 6, 27);
o templo de Jerusalém é dito “o lugar que Deus escolheu para aí fazer habitar o seu nome” (Dt 12, 5.11.21; 16, 2.6.11);
por ocasião da travessia do deserto (êxodo do Egito), Deus prometeu enviar ao seu povo um anjo tutelar, “no qual estaria o nome de Javé” (cf. Ex 23, 20s);
num tempo de calamidade, sete mulheres procuram um homem e lhe pedem seja o nome deste proferido sobre elas, a fim de que possam usufruir da tutela deste varão (cf. Is 4, 1);
aqueles que escrevem o nome de Javé sobre a própria mão, declaram-se com isto servos de Javé pertencentes unicamente ao Senhor (cf. Is 44, 5; Ap 13, 16; 14, 9);
se à cidade de Rabé se desse o nome do General Joab, a mesma ficaria sendo posse deste chefe israelita (cf. 2Sm 12, 28),
o monarca vencedor não raro mudava o nome dos homens subjugados, a fim de significar que doravante estariam sujeitos ao poder do novo soberano (cf. 2Rs 23, 34; 24, 17);
os homens por vezes desejam saber o nome de personagem misterioso que lhes aparece; este, porém, se nega a revelá-lo, pois, conforme a mentalidade vigente, a entrega do nome seria a consignação do poder próprio (cf. Gn 32, 30; Jz 13, 6).
Dadas estas concepções em Israel, a Lei de Moisés proibia terminantemente os usos mágicos, supersticiosos, do nome de Deus, abusos que se verificavam nos cultos pagãos (proferindo o nome da Divindade, os magos julgavam poder dispor da forca de Deus, coagindo o mesmo a socorrer os homens!). Qualquer pronunciar vão, irreverente, do nome de Deus era rigorosamente vedado pela Torá (cf. Ex 20, 7; 22,17; Lv 20, 27; Dt 5, 11; 18, 9-13). Destarte Javé tolerava no seu povo um pressuposto da cultura oriental, herdado dos caldeus, antenatos de Abraão; o pressuposto era deficiente, sujeito a ser removido mais tarde… Contudo o Senhor, tolerando, zelava rigorosamente para que tal concepção não afetasse a verdadeira fé e o legítimo culto de Deus.
3. Personalidade coletiva
Será preciso referir ainda outra modalidade da “Filosofia do nome” vigente entre os orientais, a qual também teve sua influência na redação de algumas passagens escriturísticas. Ei-la:
O nome de um indivíduo podia designar toda a linhagem do mesmo; as qualidades de um Patriarca prolongando-se na posteridade deste varão, o semita não via dificuldade em aplicar o nome do pai à coletividade dele descendente. Destarte é que “Israel, Jacó” designam a nação eleita inteira em Is 41, 8; “Esaú” e “Jacó” representam dois povos em Ml 1, 2s; nos oráculos de Gn 49, os nomes dos filhos de Jacó significam ora uma pessoa, ora uma tribo; o autor sagrado transfere a sua atenção daquela a esta e vice-versa, sem o indicar explicitamente.1
Os exegetas modernos explicam este modo de falar pela tendência dos orientais a pensar segundo categorias coletivas (pelo thinking in totalities, conforme os ingleses, o ganzheitliches Denken, conforme os alemães): os semitas costumavam julgar um indivíduo em função do todo a que pertencia.2 Na raiz deste fenômeno parece estar a chamada “lei da participação”, vigente entre os povos antigos, lei em virtude da qual se admitia a comunicação de qualidades da parte ao todo e do todo à parte, de sorte que a pessoa que nomeava um indivíduo se podia estar referindo a toda uma coletividade e vice-versa.
A “lei da participação” (na medida em que ela é verídica) explica bem que a mulher revestida do sol, tendo a luz sob os pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça, de que fala Ap 12, possa simbolizar tanto a Igreja (coletividade) como a Santíssima Virgem Maria (pessoa individual). São João, ao redigir Ap 12, terá intencionado referir-se à Igreja, que dá o Cristo ao mundo e ao mesmo tempo luta contra o Dragão até o fim dos tempos. Eis, porém, que a função da Igreja, Mãe e Virgem, lutadora e vitoriosa, já foi no início da era cristã compendiosamente realizada em Maria Santíssima; esta é, por conseguinte, a pessoa individual que por excelência representa a coletividade da Igreja, participando dos predicados desta. Por isto, São João, ao aludir a esta em Ap 12, a terá apresentado realçando os traços que lhe são comuns com Maria Santíssima.
Fenômeno semelhante se verifica em alguns salmos: toda a coletividade de Israel aí aparece como que concentrada na pessoa do seu rei. Este representa o povo, não como simples lugar-tenente, mas como se “o povo inteiro nele estivesse, e ele, por sua vez, fosse o povo” (cf. Sl 59; 107; 137; 143).
Em conclusão: será necessário recorrer à filosofia particular dos semitas para  interpretar, ao menos em muitos casos, o significado que toca ao nome nas páginas da Sagrada Escritura. Também este aspecto da mentalidade oriental foi utilizado pelo Espírito Santo para exprimir a mensagem perene da Palavra de Deus!
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¹ “Nomem est omen – O nome é um agouro”, diziam proverbialmente os romanos, herdeiros de concepções orientais.
¹ Haja vista o vaticínio proferido sobre Judá:
8. “A ti, Judá, hão de louvar os teus irmãos;
Tua mão pesará sobre a nuca dos teus inimigos.
Os filhos de teu pai (= as onze tribos de Israel) se prostrarão diante de ti (= tua descendência).
10. O cetro não será removido de Judá’ (= coletividade).
Nem o bastão de comando dentre os seus pés,
Até que venha Aquele a quem pertence (o cetro)
E a quem os povos obedecerão.
Ele (Judá) amarra à videira o seu jumento,
E à cepa o filhote do seu jumento.
Lava a sua veste no vinho e o seu manto no sangue da uva.
Tem os olhos rubicundos de vinho
e os dentes brancos de leite.” (Gn 49, 8.10-12).
Como se vê, a prosperidade que no futuro deve tocar a Judá e a seus descen¬dentes é descrita em termos referentes ora à tribo inteira (vv. 8.10) ora ao indivíduo apenas (vv. 11s).
² Veja-se a respeito B. J. Le Frois, “Semitic Totality Thinking”, em The Catholic Biblical Quarterly XVII (1955), 2, 315-323.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 475 – Ano 2001 – p. 561

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