quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Gnose: Religião Oculta da História

trasformacionCom a queda do marxismo, o que já se manifestava aqui e acolá se irradiou por todo o nosso cético século XX: houve uma grande explosão de misticismo. Só se fala em horóscopos, tarot, hinduísmo, homeopatia, alquimia, ocultismo, esoterismo e todos os tipos de superstição se alastram. E até ateus marxistas passaram a exibir em seus carros o dísticos “eu creio em duendes”.
O fenômeno foi tão invasivo que a famosa revista internacional 30 Giorni começou a publicar repetidos artigos sobre o misticismo herético e sobre a Gnose. E o que era assunto de eruditos passou a ser tema amplamente divulgado e universalmente admitido .
Assim, torna-se hoje bem claro que razão cabia bem a Simone de Pétrement que, ao analisar a literatura a partir do Romantismo, isto é, a partir da Revolução Francesa, concluiu: “a julgar por nossa literatura, nós entramos numa idade gnóstica”
Erich Voegelin, examinando os sistemas totalitários de nosso tempo – nazismo, fascismo, e comunismo – chega a conclusão de que eram sistemas gnósticos e os partidos que adotaram esses sistemas eram, na verdade, “ersatzs” da religião. Ele não hesita em colocar também a psicanálise e o progressismo no mesmo balaio da gnose:
“Dizendo movimentos gnósticos entendemos referir-nos a movimentos como o progressismo, o positivismo, o marxismo, a psicanálise, o comunismo, o fascismo e o nacional-socialismo (nazismo)” .
Não falta mesmo quem veja na própria ciência moderna reflexos da gnose antiga. Por exemplo, Jacques Lacarrière chama Einstein, Planck e Heisemberg “ces gnostiques de notre temps”.
Sem significar que endossemos as conclusões da obra, é interessante, entretanto, lembrar o best-seller de Fritjoff Capra – “O Tão da Física”-, que pretende ligar toda física moderna ao gnosticismo.
Poderíamos citar muitos outros autores. Para os limites de um artigo bastam-nos entretanto os fatos, esses eruditos e as revistas de divulgação cultural.
Quando se estuda a gnose entra-se num labirinto cheio de brumas, tentando descobrir segredos que permitirão chegar a um mistério. Não é de estranhar que o tema se preste a confusões.
É pois necessário estabelecer distinções. E uma primeira é entre panteísmo e gnose. O próprio Dictionnaire de Théologie Catholique de A. Vacant e E. Mangenot cita, de cambulhada, doutrinas panteístas e gnósticas, sem distingui-las. Em seu elenco estão desde as religiões hinduístas, do Egito, China e Caldéia, passando por Heráclito e Parmênides juntos, pelo sufita Ibn Arabi, Campanela até Diderot, Kant, Novalis e os românticos.
Ora, o panteísmo é a doutrina que considera que tudo – inclusive a matéria – é Deus. A gnose, ao contrário, em quase todos os seus sistemas condena a matéria como obra maligna.
Simplificando um tanto o problema, cujos meandros não podem ser examinados nos limites deste artigo, pode-se dizer que o panteísmo representa uma corrente plutôt otimista, enquanto a gnose é pessimista
O panteísmo é naturalista, monista e tende ao racionalismo.
A gnose é dualista, anti- cósmica e anti-racionalista. Mas essa é uma distinção que deveria em alguns casos ser matizada, porque alguns sistemas gnósticos são ambivalentes, com relação ao mundo material, que é dialeticamente amado e odiado ao mesmo tempo . Por outro lado, há sistemas panteístas que admitem a transformação da matéria em espírito, ao fim da evolução
Por exemplo, nota-se no sistema panteísta de Plotino uma clara tendência para gnose, embora esse autor neoplatônico tenha até escrito uma obra contra os gnósticos de seu tempo.
Conviria ainda dizer que o panteísmo é uma anti-câmara para a gnose, sistema reservado para espíritos mais tendentes ao misticismo orgulhoso do que ao sensualismo.
Para conceituar a gnose, poderíamos dizer que ela pretende ser “o conhecimento do incognoscível”.
Evidentemente, essa conceituação revela uma contradição que é típica da gnose. Conhecer o incognoscível é uma contradição conceitual e lógica. Mas ocorre que a gnose repele a inteligência e a lógica como enganadoras. O verdadeiro conhecimento seria intuitivo, imediato e não discursivo e lógico.
Conhecer o incognoscível, de fato, significa dar ao homem o conhecimento de Deus e do mal, coisas impossíveis de compreender. De fato não podemos compreender ou conhecer a própria essência de Deus que é ser infinito e transcendente, impossível de ser captado por nosso intelecto. Também não podemos entender o mal e o pecado: o mal enquanto ser não existe, e o mal moral não tem razão que o justifique.
Assim, a gnose pretende oferecer ao homem um conhecimento natural que o colocaria em posição de compreender – e portanto superar – a Deus, de compreender a mal, e, ademais, de conhecer sua natureza mais íntima, que seria divina.
A gnose é então a religião que oferece ao homem o conhecimento do bem e do mal.
Ora, sabe-se que a árvore do fruto proibido do Éden era exatamente a árvore do conhecimento ou ciência do bem e do mal (Gen. II,10). Assim, teria sido a gnose a tentação de Adão. Com efeito, a serpente prometeu a nossos primeiros pais que, se comessem o fruto proibido, “seriam como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gen., III,5). A tentação de Adão e Eva foi a de se tornarem deuses. Essa é a grande tentação do homem, que, levado pelo orgulho, como Lúcifer, não admite sua finitude, não aceita sua contingência.
Essa tentação é, de fato, uma revolta anti-metafísica. Ora, é esse um outro modo de conceituar a gnose: uma revolta anti-metafísica.
Se admitirmos essa interpretação da tentação adâmica, teremos que concluir existência uma continuidade da gnose na História. E é o que constatam os estudiosos: a gnose apresenta-se realmente como uma religião ora oculta, ora pública, mantendo porém unidade e continuidade no transcorrer da História.
Ladislao Mittner, ao estudar o pietismo protestante, seita mística e gnóstica oriunda dos tratados de Jacob Boehme e fundada por Spenner liga essa seita a uma única grande corrente gnóstica existente na História.
Para representar a unidade do fenômeno religioso gnóstico, Mittner usa a imagem muito própria e muito cogente do rio cársico.
No Carso, região calcárea da ex-Iugoslávia, há risos que de repente desaparecem na solo extremamente permeável de calcáreo e passam a correr subterraneamente, voltando a aparecer na superfície muitos quilômetros além. Rio cársico é aquele que aparece e desaparece, tornando-se ora visível ora oculto em seu percurso.
Mittner diz que “é quase impossível distinguir o pietismo das muitas outras seitas religiosas da época. Filões singulares do movimento apresentam fenômenos cársicos: aparecem, desaparecem, e, de repente, reaparecem mais além, sem que a identidade do filão possa ser propriamente demostrada”
Assim é a gnose: na história, ela é um fenômeno religioso do tipo cársico.
Essa unidade histórica da gnose através dos tempos e civilizações é constatada por muitos autores. Dennis de Rougemont, por exemplo, escreve:
“Mais perto de nós que Platão e os drúidas, uma espécie de unidade mística do mundo indo-europeu se desenha como em filigrama no plano de fundo das heresias da Idade Média. Se nós abraçamos o domínio geográfico e histórico que vai da Índia à Bretanha, constatamos que uma religião aí se espalhou, para falar a verdade, de um modo subterrâneo, desde o século III de nossa era, sincretizando o conjunto dos mitos do Dia e da Noite tal como eles tinham sido elaborados inicialmente na Pérsia, depois nos segredos gnósticos e órficos e é a fé maniquéia”.
Por sua vez, H. I. Marrou atesta:
“(…) da fato, a gnose e seu dualismo pessimista exprimem umas das tendências mais profundas do espírito humano, uma das duas ou três opções fundamentais entre as quais o homem deve finalmente escolher. Claude Tresmontant mostrou bem a permanência datentação gnóstica, sem cessar reaparecida, sob formas diversas no pensamento ocidental no curso de sua história nos Bogomilas e Cátaros da Idade Média, em Spinoza, Leibnitz, Fichte, Schelling, Hegel. Poder-se-ia continuar esta história além do romantismo alemão e até nossos dias: o destino de Simone Weil é particularmente muito significativo; foi bem o seu neo-gnosticismo que a deteve finalmente na soleira da Igreja e sua herança se reencontrava na obra histórica de sua amiga e discípula Simone de Pétrement” .
O tema, além de misterioso e fascinante, é muito atual. Voltaremos a ele, a fim de informar nossos amigos leitores sobre as brumas que envolveram nossa época após o Vaticano II e o fim do Marxismo.
Notas:
(1) cfr. 30 Giorni Ano VII, fev. 1992, pag.54, artigo “Lutero? Delírio Maniqueísta”; ano V no.2, fev. 1990, pag.3. Nessa revista é citado o Cardeal de Lubac, para quem a corrente espiritualista, mística e gnóstica da maçonaria prevalece na cultura atual.
(2)Simone de Pètrement, “Le dualisme chez Platon, les gnostiques et les manichéens”, PUF, Paris, 1947, pg.347
(3) Erich Voegelin, ” II mito del Mondo Nuovo”, Rasconi Mildo, 1976, pág.16
(4) Jacques Lacarrière, “Les Gnostiques”, Gallimard, Paris, 1973, pág.78
(5) Paris, Lib. Letourzey et Assé, 1932, verbete Pantheisme
(6) cfr. R.P. Festugère, La Revèlation d’Hermes Trimegiste, Lib. Lecoffre J. Gabalda, Paris, 1954, 4 vols., especialmente o vol. III Les doctrines de l’âme págs. 73/83
(7) cfr. Robert M. Grant, La gnose et les origines chretiènnes, Seuil, Paris, 1964, p.17
8) cfr. H.C. Puech, Position spirituelle et signification de Plotin, in En quête de la gnose, 2vol., Gallimard, Paris, p. 74/75
(9) L. Mittner, Storia della Letteratura Tedesca – Dall Pietismo al Romanticismo, Einandi, Milão, 1964, p.40
(10) Dennis de Rougemont, L’amour et I’Occident, Plon, Paris, 1939, p. 47
(11) H. I. Marrou, prefácio da edição francesa da obra de R.M. Grant, La gnose et les origines chretiènnes, Seuil, Paris, 1964, p.8.por Orlando Fedeli

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